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- "M3GAN": as convenções e reinvenções do terror moderno
Trazemos uma análise estrutural adaptada do CINECLUBE51, um de nossos eventos exclusivos para apoiadores. Confira! Que terror é um dos gêneros mais amados do cinema, nós sabemos. Mas como reinventar os beats sem sair do que é esperado e adorado pelo público? Vários filmes atuais andam surpreendendo o público e "M3GAN" (2022) foi um dos títulos recentes que apostou em um limite entre o sério e o absurdo, dividindo opiniões e arrecadando uma legião de fãs. Em seu lançamento "The Anatomy of Genres: How Story Forms Explain the Way the World Works" (2022), o autor John Truby decodifica e analisa o que ele entende como a essência dos gêneros narrativos, a fim de ajudar roteiristas e autores a construírem histórias universalmente impactantes. O autor inicia analisando o horror, tecendo uma teoria narrativa extremamente esclarecedora. Nesse artigo, unimos o conhecimento de Truby aos destaques do CINECLUBE51, evento exclusivo para apoiadores do nosso Catarse. Analisamos filmes e episódios de séries em encontros com bastante troca de conhecimento. Se interessou? Saiba mais e continue lendo! Terror: convenções e essência do gênero Muitas pessoas confundem convenções com clichês, mas isso é um erro! Convenções são estruturas, plot points ou elementos narrativos que já são conhecidos, assimilados e esperados pelo público de algum gênero, como terror, comédia romântica ou policial. A tensão, o susto ou repulsa, por exemplo, são sensações convencionais que um filme de terror causaria. Já um clichê é uma convenção mal construída, repetida à exaustão ou até mesmo nociva para a sociedade (estereótipos). Um clichê é algo que já está no inconsciente coletivo há muito tempo, nunca sendo atualizado ou melhor desenvolvido. Portanto, convenções caracterizam um gênero. Espectadores já esperam enxergá-las num filme com gêneros bem demarcados, podendo se frustrar ou se confundir sem elas. Leia nosso texto sobre algumas convenções e temáticas comuns ao terror Em "The Anatomy of Genres", John Truby decodifica vários beats do horror, trazendo uma teoria histórica, psicológica e emocional para as possíveis interpretações dessas convenções. Sobre o horror, Truby afirma que, dentre outras coisas, sua essência é basicamente um embate entre a luta pela sobrevivência VS encarar uma ameaça. A ameaça, em sua última instância, é o Outro, o desconhecido. Esse desconhecido pode ser algo que vive dentro de nós, sendo assim um dos horrores narrativos e existenciais mais assustadores. Truby afirma que é com o passado que a personagem vai lutar, confrontando uma falha de caráter como em outras estruturas narrativas. Truby também menciona as diferenças metafóricas entre dois símbolos muito utilizados no terror: o porão e o sótão. O porão seria o elemento do passado enterrado e o sótão, o inconsciente, o elemento ou mente assombrada. Mas como isso se enquadra em "M3GAN"? Separamos alguns destaques do nosso encontro exclusivo sobre a estrutura narrativa do filme. Confira e considere apoiar! [Esse artigo vai discutir pontos narrativos do filme "M3GAN" (2022) em detalhes e pode trazer spoilers para quem não assistiu.] As personagens de "M3GAN" carregam a narrativa Não é segredo que nós do WR51 acreditamos muito na força das personagens. Em "M3GAN", a protagonista não é Cady (Violet McGraw), embora ela seja apresentada primeiro. Trata-se de sua tia Gemma (Allison Williams). Sendo assim, o filme parte de um beat clássico do horror: os fantasmas do passado. Trata-se de um trauma, um fantasma literal ou um segredo, associado muitas vezes à figura do porão, que assombra a protagonista, obrigando a personagem a aniquilar essa "profecia" do passado. Ao invés de ser um "fantasma" relativo à Gemma, o filme traz esse trauma em relação à Cady. Cady: criança introspectiva, solitária, que substituiu por muito tempo a atenção dos pais por um brinquedo interativo. O pai prefere que ela seja sugada pela atenção virtual substituta do que o incomodar interagindo com eles. Cady perde os pais em um acidente e lida com uma "culpa de sobrevivente". Qual a sua falha? Segundo o "The Nutshell Techinque", de Jill Chamberlain, personagens crianças não têm falhas. Elas passam por aprendizados, ou então são veículos para que a falha da protagonista seja testada. Cady é uma personagem essencial pois possui uma ligação existencial com a protagonista: Gemma, que deu M3GAN (Amie Donald) de presente para Cady. A boneca é uma falsa solução, o prelúdio do problema. Ela é capaz de "tapar" uma ausência emocional, mas isso pode acabar sendo fatal. O terror, afinal, trabalha com extremos. Qual o extremo do amor e da proteção? O filme parte de uma premissa que leva essa ideia à sua última instância: amar demais pode ser fatal. Gemma: a tia rica, inteligente, autocentrada, ambiciosa, workaholic. Gemma indiretamente alimenta sua falha já no início, representada pelo brinquedo. Não pensa em construir família no momento (ou seja, a maior "vilã" de Hollywood depois de russos e comunistas). "Ela é um pouco como o Dr. Frankenstein, não é? Ela criou esta situação. Ela é um gênio. Ela é muito boa no que faz. Essa é a parte de sua vida que é mais significativa para ela e na qual ela dá mais atenção. A parte dos relacionamentos foi negligenciada por muito tempo e, de repente, ela é mãe e simplesmente não sabe como lidar com isso." - Allison Williams (atriz de Gemma) Novamente, segundo a Nutshell Technique, o desejo primário da protagonista a leva ao fim do primeiro ato, onde ele será conquistado. A solução do desejo vem imediatamente seguida de um “catch”, ou consequência - o clássico “Cuidado com o que você deseja”. Estrutura e implicações narrativas do primeiro ato No filme, o conflito inicial parte do chefe de Gemma, que precisa urgentemente que ela faça um novo modelo do Petz (brinquedo que se utiliza de uma simples inteligência artificial e agora é produzido pela metade do preço por concorrente). O chefe quer uma solução mais simples, para que consiga dominar o mercado. Isso vai contra o desejo de Gemma, que envolve complexificar as coisas. Ela precisa provar ao chefe o valor do projeto que vem tirando seu tempo. Desejo primário: dar o próximo passo no seu projeto de construir um brinquedo de Inteligência Artificial capaz de substituir uma pessoa, com quem a criança pode crescer, aprender e ter emoções genuínas. Incidente incitante: depois do acidente que mata os pais de Cady, ela se muda para a casa da tia. Parece uma entrada no mundo especial, mas como o próprio título sugere, esta virada acontecerá apenas quando M3GAN se tornar parte da dinâmica familiar. A vinda de Cady para a casa de Gemma é o incidente que empurra a tia para as soluções que precisa para terminar o seu ambicioso projeto e justificar sua importância ao seu chefe. Portanto, é graças a Cady que Gemma entende que M3GAN pode ser muito mais do que um brinquedo: ela pode ser uma importante ferramenta para as crianças lidarem com o luto. Assim, Cady é quem vai sublinhar a falha de Gemma, com seu luto materializando esse "fantasma herdado" do horror. Desde o início, há um problema sério de comunicação entre elas. Cady "invade" o mundo particular de Gemma e é preciso resolver essa questão. Gemma não sabe como se aproximar da menina e ajudá-la a lidar com seu trauma. A solução, para ela, envolve um terceiro elemento a ser apresentado: M3GAN. M3GAN: em um arquétipo Frankenstein atualizado, ela pode ser entendida como o monstro ou fantasma a ser aniquilado na história de terror. É um elemento moldável, que reflete as ameaças na 'sombra' e falhas de caráter das protagonistas. Para Gemma, ela não é só um brinquedo. Ela é uma companhia, ela é tudo o que seu filho precisa. Isso a faz abdicar do Petz para trabalhar na boneca, uma escolha climática que a levará a testar sua falha e também ser mais empática com o luto de Cady. O mesmo objetivo, meios diferentes: a relação entre M3GAN e Gemma é uma relação de rivalidade. É o antagonista que tem o mesmo objetivo da heroína, mas visões diferentes sobre aquilo, opostos de um mesmo desejo. Tanto Gemma quanto M3GAN querem a mesma coisa: o bem de Cady. Mas isso significa coisas diferentes de uma para a outra. Esse espelhamento é uma das bases de uma boa construção protagonista/antagonista. O segundo ato: aumentando o perigo No filme, a entrada para o segundo ato se dá quando M3GAN está viva, é sincronizada com Cady e é apresentada ao chefe. Assim, Gemma conquista seu desejo primário: convencer o chefe de investir no seu projeto, graças a Cady. Mas… no terror, a felicidade não costuma durar muito. Catch: Ao conquistar seu desejo, Gemma recebe o "catch", uma consequência ou um risco inerente a ele. No caso, Cady está diretamente ligada ao projeto. Para subir na carreira e conquistar seu sonho, comercializando a M3GAN, Gemma precisa de Cady. Essa é uma consequência direta de uma decisão tomada pelo chefe, mas alimentada pela protagonista. É algo que ela terá de lidar e se mostrará como uma grande consequência mais tarde. Parte dessa consequência é o próprio pareamento da menina: essa é a manifestação direta do problema a ser resolvido no final e a ligação se torna mais forte do que o previsto. É por causa do catch que a narrativa chegará no seu ponto mais baixo mais à frente, onde o desejo primário se torna o pior pesadelo da protagonista. Se o desejo primário é dar vida à M3GAN, seu pior pesadelo necessariamente precisa ser M3GAN estar viva. E isso remete à essência de vida vs morte, matar ou morrer. Em "Save the Cat!: The Last Book on Screenwriting You'll Ever Need", o autor Blake Snyder aponta um beat importante em qualquer estrutura: o fun and games, ou a promessa da premissa. Fun and Games: grande parte do segundo ato. M3GAN faz o que Gemma precisa fazer mas que não é capaz – substituir a mãe de Cady. O que parece um conforto fácil, esconde, na verdade, um problema que alimenta a vulnerabilidade da menina. Paralelamente, alimenta também a falha de Gemma em não se conectar com ninguém e focar apenas no seu trabalho. Mas antes dela sofrer essas consequências, as duas vivem divertidas aventuras e brincadeiras. O fun and games estão ligados diretamente ao sucesso de Gemma, que "esconde" a piora da falha. Em nosso ebook "A Personagem além das fórmulas", falamos muito sobre a relação entre força e falha, já que são essenciais à construção do personagem. M3GAN substitui Gemma em todas as instruções e conexões que ela precisava exercer na vida de Cady. Portanto, M3GAN estimula a falta de empatia da protagonista e Gemma fica ainda mais focada na carreira. Isso é narrativamente alertado por uma personagem dinâmica que faz papel de aliada, uma colega de trabalho de Gemma. Ainda assim, a protagonista decide ir rumo à falha. Riscos aumentam: M3GAN mostra que é capaz de “ligar” e “desligar” quando bem entender. Ela é autônoma e está constantemente pareada à Cady, sua maior prioridade. Isso aumenta o perigo do "monstro" e a ameaça à integridade física dos demais. Esses riscos também são potencializados pela protagonista. M3GAN seguirá à risca as instruções de Gemma o que provará que, no fim, ela é a sua própria inimiga. Ela precisará vencer a sua criação, provando seu instinto de salvar Cady, mesmo que isso signifique sacrificar-se pela menina. É com essa instrução que M3GAN começa a se tornar hipervigilante e levar a sério qualquer possível ameaça à Cady. Ou seja, M3GAN segue a instrução de Gemma, sua criadora. Ao contrário do monstro de Frankenstein, M3GAN tem um motivo específico para existir, além de um entendimento maior do que ela realmente é. Só que, por se tratar de um terror com inspirações sci-fi, M3GAN testa esses limites e traz à tona o medo que o ser humano tem de sofrer os descontroles das máquinas. O diálogo com o horror: somos seres humanos, falhos e frágeis. A máquina, incapaz de fazer essas distinções, por mais desenvolvida que seja, é o inimigo perfeito para um filme de horror. É o ser imortal que nos lembra da nossa própria mortalidade e é capaz de acelerar esse processo. Em uma apresentação a investidores, Cady se abre pela primeira vez sobre o acidente que matou os pais e M3GAN estabelece uma conexão, convencendo todos do seu valor. Gemma, então, conquista o prestígio que queria (um complemento ao seu objetivo primário): impressionou a todos e vai ganhar mais verba para o projeto. Ela vive o topo dos seus objetivos profissionais, mas consequentemente o ponto mais baixo do seu papel como guardiã de Cady. Para além de discussões morais extra fílmicas, o filme "M3GAN" deixa claro que, no seu discurso, a carreira e a família não podem coexistir. A discussão temática é de que um lado precisa ser sacrificado pelo outro. Isso vira o dilema, a escolha a ser feita pela protagonista. E, aqui, Gemma vive os louros da sua escolha profissional. Em consequência disso, Cady passa a se afastar ainda mais da tia. M3GAN, então, entra em uma sucessão de crimes em prol de seu objetivo e Gemma se torna sua maior inimiga. Progressão da convenção – a iminência da mortalidade: Gemma tem como inimiga um ser imortal e ela precisa enfrentar sua própria mortalidade se quiser superá-la. Ela irá superar M3GAN quando o fato de ser humana der a ela a peça que falta em M3GAN: uma conexão humana e real com Cady. Um passo em direção à força: Gemma aceita abdicar do trabalho para cuidar de Cady na atividade escolar ao ar livre. Gemma já entende a importância da socialização na vida de Cady e como isso não pode ser substituído por devices. É um grande contraste com a Gemma do primeiro ato, que deixava Cady usar seu tablet pelo tempo que quisesse. A tensão aumenta e os perigos da obsessão de M3GAN ficam aparentes à Cady. Assim, ela passa de amiga à refém de M3GAN. Ao falar com o investigador, Gemma também entende os perigos dela: a boneca está por trás de 3 mortes. É o fim da sequência que possivelmente representa o midpoint, onde a sorte da protagonista muda violentamente e ela tem uma clareza muito maior do perigo que enfrenta. Agora, chegar à força exige de Gemma um sacrifício. Quando a protagonista decide pela força e identifica sua falha, é importante mostrar esse passo como um grande desafio. Ela precisará sacrificar algo importante, que alimenta a falha. No seu caso, a apresentação ao público, sua carreira. Assim, Gemma e Cady finalmente encaram, juntas, a morte dos pais da menina. O luto é o real "fantasma". Elas finalmente desistem da M3GAN e vão embora. Idealmente, porém, esse beat seria mais impactante e traria riscos mais altos. Terceiro ato: matar ou morrer Esse é o ato de maior tensionamento narrativo, onde vemos os extremos das temáticas discutidas e também do embate literal entre vida e morte. Decisão climática: M3GAN, a antagonista, oferece à Gemma o caminho da falha uma última vez. Esse é o momento de Gemma tomar a decisão climática pela força. Quando M3GAN ameaça a sua vida, Gemma se coloca em risco para poupar Cady. É o sacrifício que muda sua trajetória. No horror, fugir é a primeira reação,, mas no final é preciso enfrentar o monstro. O pacto com o passado: como mencionamos, para Truby, o horror nasce dessa herança maligna que não nasce com a protagonista, mas deve ser solucionada por ela. A única resposta possível a essa maldição também precisa vir do passado. Sendo assim, enfrentar o monstro envolve necessariamente um retorno à tradição. Resolver esse passado primeiro, então derrotar a ameaça externa. Cady e Gemma destroem M3GAN com ajuda de Bruce, um brinquedo robótico que Gemma desenvolveu e abandonou num canto (pode-se dizer que esse abandono tem a ver com a sua ambição de carreira e falta de cuidado). Convencionalmente, a protagonista é a responsável por esse enfrentamento, mas, aqui, ela é representada por Bruce, criação sua. Ele, por sua vez, é manipulado por Cady, trazendo uma pincelada de crescimento e transformação para essa personagem. Esse é o ponto onde não só Gemma aceita seu papel materno, como Cady a aceita como sua mãe substituta. Temos também o falso final, outro beat clássico do horror (e outros gêneros, como o thriller) que Truby discute no seu livro. Elas, então, derrotam o monstro juntas, materializando o sentido simbólico do enfrentamento do medo da morte. Gemma arranca o rosto falso de M3GAN e encaram o seu vazio, um símbolo para o real vazio emocional da máquina. Porém, por se tratar de um final "de preparo" para uma franquia, entendemos que a IA não foi destruída e poderá retornar no futuro. Conclusão Enquanto "M3GAN" está longe de ser um filme "perfeito", ter um discurso impecável ou ser adorado universalmente, a sua estrutura é uma boa base para falar sobre diversos beats do horror moderno. E não é porque é um blockbuster que não pode lidar com temáticas profundas, como conexão humana, luto e existencialismo. O CINECLUBE51 acontece mensalmente e a escolha do filme/episódio é sempre votado pelos apoiadores. Quer participar? Conheça nosso Catarse!
- Saiba escolher falhas mais interessantes para suas personagens
Trazemos dicas inspiradoras e uma lista robusta para você pensar em defeitos narrativos mais objetivos Tanto na vida real, como na ficção, ninguém é perfeito – e é isso que deixa os conflitos narrativos muito mais potentes e interessantes! Porém, muitas vezes, pode ser difícil conceder defeitos que dão um arco aos personagens ou implicam em um arquétipo, etc. Mas tais falhas não só enriquecem a história trazendo motivações mais profundas como podem influenciar diretamente na trama principal. Não se trata de escolher três falhas aleatórias e seguir o baile. Trata-se de construir personagens humanas, complexas e que atraem o olhar do público, carregando adiante um tema a ser explorado. Para ajudar nessa construção, trazemos conceitos de falha de caráter, os diferentes tipos que existem e muito mais! Traduzimos e adaptamos o texto do Reedsy e complementamos com informações presentes no nosso ebook "A Personagem Além das Fórmulas", que você pode conhecer melhor clicando aqui. Acompanhe! O que é uma falha narrativa? Uma falha de caráter de uma personagem é uma qualidade negativa que afeta ela mesma ou a outros de maneira nociva. O grau desse efeito varia muito, com base na própria falha, no núcleo social da personagem e do poder que ela tem sobre outras. Uma personagem prolixa pode ser desagradável de se conversar, mas certamente seria muito mais agradável do que uma personagem que deseja matar alguém. No entanto, “tagarela” e “homicida” se enquadram igualmente no espectro de falhas de caráter. Entre essas duas características existe um vasto oceano de coisas infelizes que a personagem pode ser: teimosa, irritante, egoísta, agressiva, obsessiva ou simplesmente ingênua, por exemplo. Cada uma das falhas tem certas consequências esperadas - mas a beleza é que cada característica pode se apresentar de maneira diferente em diferentes personagens, dependendo das circunstâncias e papel narrativo das mesmas. Em termos estruturais, a falha pode ser o aspecto central da "necessidade" que a personagem precisa transformar. Uma pessoa arrogante pode precisar passar por um arco de transformação e tornar-se humilde. Já uma pessoa preconceituosa pode precisar aprender a ser respeitosa, e assim por diante. Diferentes arcos de transformação Gosto de personagens que não mudam, que não aprendem com seus erros. – David Fincher Assim como o cineasta David Fincher pontua, não é obrigatório que a personagem mude no fim da história (seja protagonista, antagonista ou o que for). Ou seja, como é bem comum a anti heróis e personagens de sitcoms, por exemplo, a falha de caráter pode permanecer e o que acompanhamos na narrativa tem relação a outra coisa. Uma personagem clássica de um filme que tem a transformação (ou aprendizado) como parte da estrutura (como na Jornada do Herói) pode ver a sua falha sendo testada ao longo do segundo ato do filme, que a leva a passar por uma grande transformação interna. Mais do que conquistar seu desejo primário, a personagem vai reavaliar suas ações e crenças para corrigir erros que poderiam custar relações duradouras (necessidade). Falamos bastante sobre isso em nosso ebook. Já uma personagem de série, por exemplo, pode ter uma teia de falhas que compõe seu caráter; e nós apenas examinamos essas características e seus efeitos. Ela pode mudar certos aspectos, mas seu núcleo nunca mudará. Isso pode ser inclusive o motor narrativo da série, como é o exemplo de "Mad Men" (2007). Tipos e graus de falhas de caráter A sua protagonista não necessariamente terá apenas uma falha, apenas um desejo e apenas uma necessidade. Muitas vezes, inclusive, esse leque de elementos enriquece uma obra ao mesmo tempo em que constrói uma curva dramática oculta que vai se revelando aos poucos. A autora Jill Chamberlain assume essa posição em seu livro “The Nutshell Technique”, onde deixa claro que nem sempre a falha central mais emblemática ou o desejo mais forte são aqueles que guiam, como instrumentos, a trama. É preciso estabelecer um desejo e uma falha para esse propósito, o que não exclui os demais. Assim, podemos dizer que existem três tipos de falhas de caráter: menores, maiores e trágicas. Uma falha menor é algo que tem um impacto mínimo na vida de uma personagem. Uma grande falha as afeta de forma mais significativa. Já uma falha trágica causa a queda fatal dessa personagem – embora nem sempre a morte literal, pois essa queda de status pode ser uma morte moral, morte de um relacionamento, etc. Está diretamente relacionada à estrutura clássica da tragédia aristotélica. Como seria de esperar, pequenas falhas são tipicamente coisas como falta de higiene e esquecimento. As principais falhas tendem a ser mais próximas de algo como hipocrisia e inveja. Uma falha trágica seria algo como psicopatia ativa, auto sabotagem ilimitada ou extrema arrogância. No entanto, observe que o resultado de uma falha depende de como você constrói a relação da personagem com ela! O que funciona como uma falha menor para uma pessoa pode ser uma falha trágica para outra. Por exemplo, em "Adoráveis Mulheres", a vaidade de Amy é um aspecto pequeno e divertido de sua personagem; e algo que ela supera. Já para a personagem mitológica Narciso, por outro lado, a vaidade é trágica. Arquétipos específicos também lidam com falhas de maneira mais acentuada, como vilões, anti heróis e antagonistas no geral. Além de tudo, lembre-se que algumas das histórias mais interessantes resultam da subversão de expectativas que temos sobre como uma determinada falha se desenrolará. Precisa de ideias de falhas de personagens para usar em sua história? Confira os exemplos abaixo! Lista de falhas de caráter para você se inspirar Falhas cosméticas ou menos prejudiciais A maioria desses defeitos de caráter é mais irritante do que prejudicial. Outros até têm o potencial de causar danos, mas precisam evoluir para chegar nesse ponto. Um bom exemplo disso é a 1ª temporada da série "Fargo". Inadequado – socialmente inquieto e desconfortável (não sabe se comportar confortavelmente em situações sociais). Chato – monótono, tedioso, desinteressante (não confundir com uma personagem flat, que ainda não se desenvolveu o suficiente). Exemplo: Mary Bennet em "Orgulho e Preconceito". Infantil – imaturo ou inocente. Exemplo: Peter Pan. Desajeitado – descoordenado e atrapalhado; muitas vezes sujeito a acidentes. Tolo – falta de bom senso pessoal. Fofoqueiro – inclinado a espalhar boatos ou falar sobre os outros pelas costas em demasia. Manipulável – facilmente enganado ou persuadido a acreditar em algo. Sem senso de humor. Preguiçoso – sem vontade de trabalhar ou agir em relação a algo narrativamente importante. Excessivamente submisso. Exemplo: Lester Nygaard na série "Fargo". Orgulhoso – ter uma opinião elevada de si mesmo e raramente admitir estar errado. Exemplo: Sr. Darcy em "Orgulho e Preconceito". Superficial – tendo poucos pensamentos profundos e preocupando-se apenas com coisas insignificantes. Exemplo: Daisy Buchanan em "O Grande Gatsby". Mimado – malcriado e egocêntrico como resultado do excesso de indulgência. Teimoso – obstinado e teimoso; recusando-se a desistir e causando confusões para si. Exemplo: Verônica em "Bom Dia, Verônica". Vaidoso – preocupado demais com a aparência física em detrimento a outras coisas. Exemplo: Amy March em "Adoráveis Mulheres". Falhas maiores ou de jornada Essas devem ser levadas mais a sério: elas podem impactar fortemente a vida de uma personagem, bem como a vida daquelas ao seu redor. Além disso, são características como essas abaixo que devemos buscar quando construindo uma narrativa clássica de transformação, já que são defeitos mais expressivos e que podem ser liquidados durante a narrativa. Do adultério à ganância e à pura ignorância, se você escolher uma dessas falhas para sua personagem, certifique-se de considerar cuidadosamente como isso moldará sua história e se essa jornada terminará com elas superando suas limitações ou não. Adúltero – trai o parceiro ou cônjuge. Apático – pouco interesse ou entusiasmo pela vida. Exemplo: O narrador em "Clube da Luta". Arrogante – exageradamente presunçoso. Exemplo: Draco Malfoy na franquia "Harry Potter". Hostil – agressivo mesmo quando não provocado. Amargo – ressentido e desagradável por causa de uma experiência passada. Covarde – falta de coragem para defender o que ou quem precisa. Desonesto – mentir ou se comportar de maneira enganosa, geralmente para tirar vantagem dos outros. Invejoso – quer possuir o que o outro tem (pode ser um objeto físico ou um traço de caráter). Ganancioso – sempre deseja mais (riqueza, atenção, etc.), mesmo em seu próprio detrimento. Hedonista – entrega-se completamente à busca do prazer. Exemplo: Dorian Gray em "O Retrato de Dorian Gray". Hipócrita – age em oposição às próprias crenças ou proclamações sobre os outros, normalmente porque acredita que estão “acima” deles. Ignorante – possui pouco conhecimento prático ou consciência do mundo. Exemplo: Effie Trinket em "Jogos Vorazes". Incompetente – incapaz de realizar tarefas narrativas básicas. Exemplo: Sr. Poe em "Desventuras em Série". Sem consideração – pouco se importa com os sentimentos dos outros. Exemplo: Sherlock Holmes. Possessivo – superprotetor e controlador. Rígido – é totalmente inflexível em seus princípios, mesmo quando apresentado a motivos para mudar. Egoísta – preocupa-se exclusivamente com as próprias necessidades e desejos. Fora da Lei – por necessidade ou gosto. Exemplo: Omar Little em "The Wire". Rancoroso – amargo e malicioso. Exemplo: Severus Snape na franquia "Harry Potter". Falha graves ou trágicas Estas você verá com mais frequência em antagonistas ou vilões declarados: crueldade, traição, total falta de remorso e assim por diante. Embora seja certamente fascinante pensar em como essas falhas profundas podem ser efetivamente equilibradas com outras características, tome cuidado para não exagerar (a não ser que esse seja seu objetivo, como em "Psicopata Americano"). Abusivo – crueldade ou violência habitual e extrema em algum tipo de relacionamento. Intolerante ou preconceituoso – abrigar preconceitos ferozes e inamovíveis sobre um determinado grupo social. Cruel – intencionalmente causa dor e sofrimento aos outros. Sádico – prazer em infligir dor ou humilhação aos outros. É um passo adiante de alguém cruel, pois emprega um composto psicopatológico mais forte. Desleal – deixa de permanecer fiel à pessoa/entidade a quem jurou lealdade. Fanático – extremamente obcecado ao ponto da ilusão. Exemplo: Annie Wilkes em "Misery". Maquiavélico – astuto, manipulador e sem escrúpulos em seus esquemas. Exemplo: Tom Ripley em "O Talentoso Sr. Ripley". Manipulador – conivente e controlador dos outros para conseguir o que quer. Exemplo: Amy Dunne em "Garota Exemplar". Assassino – que concretiza o desejo de matar. Exemplo: Hannibal Lecter em "O Silêncio dos Inocentes". Negligente – deixa de dar o devido cuidado ou atenção a alguém ou algo. Obsessivo – tão consumido por um único assunto que não consegue funcionar normalmente. Opressivo – brutalmente autoritário em relação a um grupo de pessoas considerado “inferior”. Exemplo: Os Comandantes de Gilead em "The Handmaid's Tale". Paranóico – incomumente desconfiado, desconfiado ou nervoso de que algo ruim possa acontecer com ele. Sem remorso – não sente vergonha, arrependimento ou simpatia quando faz algo errado. Autodestrutivo – age de forma a destruir a própria saúde e/ou felicidade. Traiçoeiro – profundamente desleal e traidor, geralmente para ganho pessoal. Exemplo: Logan Roy em "Succession". Violento – fisicamente prejudicial para os outros. Exemplo: Patrick Bateman em "Psicopata Americano". Conclusão Afinal, o que queremos dizer com "falhas mais interessantes"? O que for mais valioso e intrigante para contar sua história. Um exemplo: você escolheu o tema "família disfuncional" para sua narrativa. Nem todas as personagens vão precisar ter defeitos horríveis e extremos, mas, idealmente, todas terão falhas que se relacionam com o tema em algum nível. O que quer dizer uma "mãe negligente" na sua história? Ou então, uma "mãe possessiva"? Essas duas características têm implicações diferentes. Qual arco essa personagem terá? Ela vai mudar ou não? Qual aspecto do discurso "família disfuncional" ela vai representar? Essas são questões fundamentais de se pensar a fim de construir personagens mais originais e complexas. Quer construir protagonistas e outras personagens que sejam únicas, interessantes e comuniquem bem o seu tema? No nosso ebook, são discutidas as diferentes esferas das personagens (interior, social e pública), bem como articulação de falha & força, arquétipos, diferentes arcos, estruturas e mais. Conheça:
- “O Menino Maluquinho” e o roteiro de animação
A equipe de roteiro da nova série da Netflix divide conosco como foi o processo de escrita e adaptação No dia 12 de outubro de 2022, a Netflix lançou a nova série brasileira de animação “O Menino Maluquinho”, produzida pela Chatrone e baseada no icônico personagem do Ziraldo. Originalmente publicado como livro em 1980, “O Menino Maluquinho” conquistou o coração da juventude da época, se tornando um clássico da literatura infantil brasileira e ganhando continuação em quadrinhos que foram publicados até meados dos anos 2000, além de adaptação para o cinema e TV. É a primeira vez que “O Menino Maluquinho” ganha uma adaptação em animação, trazendo as aventuras do menino travesso para o público infantil de hoje. Para entender melhor como foi todo esse processo de adaptação e falar um pouco sobre roteiro de animação, conversamos com Carina Schulze, roteirista e sócia-fundadora da Chatrone, além dos roteiristas Arnaldo Branco, Ana Cecília de Paula e Gustavo Suzuki. Confira! Trazendo “O Menino Maluquinho” para os dias atuais Adaptar uma obra tão consagrada como “O Menino Maluquinho” não é tarefa fácil. Carina Schulze já adianta que tudo foi feito com a aprovação do mestre Ziraldo, que garantiu que a equipe havia adaptado muito bem o seu universo para os dias de hoje. “Além da honra e privilégio de poder trabalhar com os personagens do Ziraldo, tem uma coisa muito legal de trabalhar num projeto desses, que é o fato de que a equipe inteira tem uma relação afetiva com a obra”, comenta Gustavo Suzuki, destacando a tensão que envolve uma adaptação como essa. Schulze nos conta um pouco do princípio desse processo de concepção, que começou em meados de 2017 em uma reunião entre a plataforma de streaming Netflix e a produtora Chatrone. “A Netflix já estava procurando projetos para fazer no Brasil e perguntaram quais eram os nossos IPs (propriedades intelectuais) favoritos”, explica Schulze. Nesse papo, surge a ideia de revisitar o universo do Ziraldo, que participou ativamente do projeto desde o princípio. Os roteiristas deixam claro que o livro original foi a principal base do trabalho de adaptação. Arnaldo Branco conta como foi o “estalo” que rendeu a equipe a ideia dos rumos dessa temporada da animação. “O livro termina com o divórcio dos pais. Pensamos: e se a gente pegar a partir deste ponto?”, resume. Assim, a equipe trabalhou com certa liberdade artística, ao propor um caminho para “O Menino Maluquinho”: lidar com o divórcio dos pais e com a realidade de uma nova cidade. Sobre o enredo, Ana Cecília destaca a vontade da equipe de capturar o espírito do livro. “Não é um livro muito de enredo”, explica, “mas uma grande apresentação de personagem”. Mesmo com as novas referências culturais acrescentadas pela sala de roteiro - que vão de festa junina à Carreta Furacão -, o norte sempre foi manter o caráter imaginativo da carismática personagem de Ziraldo. Mesmo sendo moderno, a gente queria que ele fosse lúdico. Manter aquela coisa de ir para a rua, brincar. Combinar bem o mundo atual com o universo imaginativo do Ziraldo. - Arnaldo Branco Para Suzuki, a ideia de trabalhar “a infância, um momento mágico nas nossas vidas” alimentou o objetivo de criar histórias comoventes e impactantes. Sobre isso, Ana Cecília lembra da orientação da Carina Schulze durante todo o processo: “o episódio não pode ser só um disparador de piada. É preciso ter uma linha emocional”. A sala de roteiro Schulze conta com orgulho que a sala de roteiro apenas começou com o “ok” do mestre Ziraldo, que teria afirmado: “vocês acertaram na mosca”. Apesar da sua proximidade com o processo de adaptação, a produtora e roteirista revela que Ziraldo esteve muito mais próximo da equipe de arte. Desde o princípio, a produção passou pelo desafio de trabalhar uma grande adaptação durante a pandemia. Para Schulze, apesar do desafio em si, essa realidade trouxe alguns benefícios para todo o processo. Um deles foi a possibilidade de contar com o trabalho de profissionais espalhados por todo o Brasil, algo que influenciou bastante o conteúdo da série em si. “Uma coisa legal nesse processo foi o esforço coletivo de trazer mais brasilidade para a série”, comenta Gustavo Suzuki. Conseguimos trazer o Brasil para dentro da série. Tem gírias de toda a parte nos episódios. Artistas também trouxeram looks específicos da sua cultura, das suas casas, ruas… É uma das coisas que deixa a série atual. - Carina Schulze Para os anos 1980, falar de divórcio em uma obra infantil já era algo muito interessante, como destacam os roteiristas. Para eles, isso abriu um leque de possibilidades para deixar mais presente esse assunto, contando com novas composições familiares, próprias do nosso tempo. A sala de roteiro também precisou se adaptar a reuniões por Zoom – algo que, segundo eles, não trouxe grandes problemas e trabalhar com a câmera desligada acabou se tornando uma válvula criativa. “Era uma coisa bem divã de terapia, um fluxo de consciência, de ideias”, lembra Ana Cecília. Essa possibilidade de poder construir um universo imaginativo com a câmera desligada se tornou uma importante ferramenta para que os roteiristas se sentissem confortáveis para dividir histórias e situações pessoais que viriam a influenciar episódios. Para reforçar a importância de nos mantermos atentos a essa nova forma de trabalhar, Arnaldo menciona matéria sobre cansaço mental com as telas. “Muita gente falava deitado, confortável. É muito menos cansativo”, completa. Os prazeres e desafios do roteiro de animação Com todas as suas especificidades, o roteiro de animação exige uma nova forma de pensar o conteúdo. Afinal, como Branco aponta, “existe uma liberdade criativa, mas com alguns limites”. Escrever uma cena de “enchente”, como sugere Ana Cecília, em uma animação é muito diferente de quando trabalhamos com live-action, do ponto de vista orçamentário. Mesmo assim, é preciso pensar em uma série de questões relacionadas ao estilo de animação em si e como este pode contribuir para o roteiro. Muito do estilo de animação é desenvolvido junto do roteiro. Se ele vai ser mais ágil, mais parado, ou se vai ficar mais doido, quebrando as regras da física. Tudo isso é decidido junto. O jeito que você vai escrever o roteiro vai influenciar a forma como eles vão pensar a concepção visual. É uma troca muito presente. - Carina Schulze Para Branco, há também a responsabilidade criativa de “pensar recursos que prendem a atenção”, completando: “nisso, como dizem, existem dores e delícias”. Branco também aponta outro fator: a participação contínua da equipe de roteiro em etapas mais avançadas, algo que nem sempre ocorre em live-action. “Às vezes, com o live-action, a gente se sente um pouco abandonado. Já na animação há muito esse retorno da parte da equipe de produção”, resume. “Eu lembro de assistir ao primeiro episódio e me surpreender com várias piadas visuais”, conta Ana Cecília. São situações que, descritas no roteiro, poderiam levar o leitor a determinada interpretação, mas ganham força com as ações, iluminação e decupagem proposta pela equipe responsável pela animação. O processo criativo do Menino Maluquinho foi bastante colaborativo, de um jeito meio inédito, ao menos pra mim. Cada roteiro, personagem e locação eram desenvolvidos em reuniões envolvendo roteiristas, designers, animadores, diretores e produtores. Esse tipo de interação é muito positivo para todos os departamentos: melhora a qualidade do roteiro, do desenho, da decupagem, além de botar todo mundo na mesma página, deixando a série mais coesa. - Gustavo Suzuki O legado de “O Menino Maluquinho” Como foi destacado pelos roteiristas, “O Menino Maluquinho” atravessou gerações - uma obra consumida em diferentes formatos e plataformas. Falamos em responsabilidade na adaptação, mas é preciso também destacar o legado dessa história, que dá protagonismo a um menino e sua infinita imaginação. “Um menino muito emocionalmente maduro, inclusive”, como lembra Carina Schulze. Como conciliar esse legado com inputs de uma nova geração? “Temos que tirar da cabeça a frase ‘no meu tempo era melhor’. Meu tempo é agora, eu estou vivo agora”, comenta Branco, valorizando as mudanças culturais exigidas pela adaptação. O roteirista completa: “o importante é manter a curiosidade, não tratar o novo como se fosse um atentado à sua memória ou geração”. Para Ana Cecília, foi muito importante deixar de lado a pergunta “a criança vai entender?” durante a feitura da série. “Se a criança não entender, tudo bem, o pai e a mãe vão entender e vai ser divertido para todo mundo”, comenta Ana Cecília. Dada a influência de “O Menino Maluquinho”, a equipe promete que a história é capaz de tocar o coração e atiçar a curiosidade de todas as gerações - seja através dos novos elementos culturais de hoje, ou mesmo de clássicos personagens que acompanharam tantas infâncias. Quer saber como ficou a primeira adaptação em animação de “O Menino Maluquinho”? Corre lá! O primeiro bloco desta temporada já está no catálogo da Netflix e o próximo será lançado em janeiro. #Netflix #OMeninoMaluquinho #Roteiro #audiovisual
- 8 dicas indispensáveis para escrever o seu segundo tratamento
Reescrever o roteiro é só revisar? Preciso mudar toda minha história? Confira nossas dicas para escrever o seu segundo tratamento de maneira mais eficiente Você já deve ter ouvido a frase "escrever é reescrever". Quando se trata de versões ou tratamento de roteiro, essa é uma verdade que não dá para escapar. Porém, tanto roteiristas iniciantes quanto profissionais podem se sentir extremamente perdidos quando se trata de repensar ou reescrever toda uma obra – seja um roteiro original ou um encomendado. O segundo tratamento é onde você ajusta o geral da sua escrita e faz as alterações necessárias para chegar na potência narrativa mais satisfatória. É aí que você vai poder fazer grandes mudanças no desenvolvimento das personagens ou identificar buracos na trama que não percebeu antes. Por isso, o segundo tratamento do roteiro pode ser o mais difícil de fazer – nenhum artista quer desmontar sua obra depois de ter passado pelo processo meticuloso de construir tudo – mas é um passo necessário que beneficiará sua história, atendendo as necessidades de um player, produtora ou as suas ambições como autor/a. Para ajudar nisso, trazemos 8 dicas essenciais que podem facilitar esse processo de escrever seu segundo tratamento. Acompanhe! Começando bem: o primeiro tratamento Antes de conhecer algumas ferramentas de reescrita, é preciso entender que não existe um jeito "certo" de escrever, nem mesmo um primeiro tratamento "ideal". Isso é ainda mais real quando se trata daquele projeto do coração, que temos total liberdade para construir da forma que quisermos. Porém, um primeiro tratamento precisa ter pelo menos alguns elementos básicos, que depois serão desenvolvidos (ou até retrabalhados totalmente) na reescrita. A primeira versão do projeto existe para você construir o que interessa, o que é mais urgente e entender melhor o que você quer expressar (...ou o que o player pediu para expressar). Portanto, de certa forma, o primeiro tratamento funciona como uma série de perguntas. Essa foi a melhor escolha para o personagem? Esse plot twist funciona? A história funcionaria melhor em outro lugar ou época? Essas duas personagens podem ser combinadas para fazer uma com mais profundidade? Essa estrutura funciona? A reescrita não se trata de mudar algumas linhas de diálogo, ajustar gramática ou talvez adicionar ou subtrair uma cena ou duas. O segundo tratamento tem potencial para ser muito mais: não é sobre apenas afinar o motor. Trata-se de tirar o motor, descobrir como ele está funcionando e, possivelmente, substituí-lo. É sua chance de fazer grandes mudanças para explorar temas abandonados e questionar todas as escolhas. Mas não precisa ter medo do processo! O que muda no segundo tratamento? Novamente, não existe resposta certa. Pode ser tudo, grande parte da história ou somente algumas linhas de personagem. Pode ser a própria jornada da protagonista, tirar ou adicionar voice over, etc. O que interessa a nós é entender para onde o filme ou episódio vai; qual a sua forma mais objetiva. Qual função cada escolha cumpre – algo que antes era instintivo, agora tem um papel mais narrativo. Aquela personagem que reagia de maneira conveniente agora tem uma falha a ser corrigida ou um arquétipo a ser desafiado. Além disso, é a partir do segundo tratamento que os tons começam a ser ajustados. É um filme de terror? Quem sabe, deixa-se uma tensão maior a partir do Ato II. É um romance? Agora é a hora de determinar melhor o tropo inicial das personagens, bem como a voz de cada uma. Algo a se lembrar é: nenhuma mudança é proibida, mas o cerne (e talvez mensagem) da história precisa brilhar ainda mais. Quer ajuda nisso? Confira nossas dicas! 8 dicas para uma boa reescrita de roteiro 1. Dê um tempo antes de recomeçar Especialmente se este for seu primeiro roteiro. Só comece seu segundo tratamento depois de ter tido tempo suficiente longe do primeiro. Criar distância entre você e o trabalho pode dar uma chance à sua mente para se desapegar de ideias específicas. Certos elementos da história podem parecer necessários, mas não se encaixam na história. Ou sua narrativa pode precisar de algo, mas você não tem certeza de como implementar esse algo. Fazer uma pausa pode ajudar a ver sua escrita de um ângulo nunca antes visto, trazendo ideias mais novas. A familiaridade tende a gerar descuidos ao reler, além de dificuldade de sair do mesmo registro de ideias. O tempo vai depender de você (ou da demanda): pode ser uma semana, alguns meses... O tempo que for necessário para ser "outra pessoa" quando voltar a desenvolver, para que sua escrita de fato melhore e não seja só uma versão das mesmas coisas. Para criar essa distância, uma boa ideia pode ser escrever outra coisa entre os tratamentos. Não precisa ser um roteiro totalmente novo, mas desenvolver alguns textos ou discutir projetos de outras pessoas pode ajudar a refrescar a mente. 2. Volte à escaleta (ou argumento) Esse talvez seja o passo mais importante da saga das reescritas: voltar a outros textos de desenvolvimento antes de mexer no roteiro. Mesmo que não exista processo "certo" ou "errado", não tem como negar que revisitar um texto menor é muito mais fácil do que reescrever direto no roteiro. Sendo assim, se faz uma retro-escaleta, ou volta-se à escaleta do primeiro tratamento para desenvolver em cima dela. O objetivo dessa segunda escaleta é enxergar o formato da sua história, o esqueleto. Assim, antes de começar a mudar as cenas, você consegue ver se o ritmo, a estrutura e os arcos gerais dos personagens precisam de algum trabalho. Você percebe se existem lacunas de lógica, ou se uma personagem faz mudanças emocionais muito rapidamente, etc. Enumere cada cena com uma breve descrição, dividindo por atos ou sequências, se preferir. Em geral, se ficar muito difícil escrever a descrição curta de uma cena, essa pode ser uma cena problemática ou que se beneficiaria de uma reescrita. Alguns roteiristas preferem voltar e trabalhar no argumento, o que também é uma opção. Essa ferramenta é boa para quando há necessidade de mudar coisas bem gerais, expressivas ou que dizem respeito ao grande arco da protagonista. Outra opção é usar uma lista de beats, que funciona bem para filmes e séries de gênero mais convencionais. Essa lista vai além do beat sheet e é bem similar à escaleta, mas só inclui cenas com beats que avançam a narrativa de fato. Por exemplo, uma cena onde a personagem apenas observa a janela e não muda seu status na trama pode não ser um beat, então não entraria nessa lista. 3. Do maior ao menor: revise a estrutura Talvez o primeiro ato tenha 45 páginas. Ou então dois grandes beats no Ato II parecem muito próximos. A conclusão pode estar apressada, etc. Essa é a hora de mudar tudo isso! Embora seja divertido ajustar o diálogo e realmente mergulhar nas cenas, não há razão para começar a mudar palavras e frases quando parágrafos inteiros, cenas ou até atos ainda podem ser cortados. O conteúdo e o rumo da história podem seguir uma direção diferente durante o curso da reescrita. Assim, a maneira mais eficiente de abordar o segundo tratamento de uma história é trabalhar do grande para o pequeno, do geral ao detalhe. A estrutura é algo bem expressivo, então entra aqui no início da análise. Seu processo pode ser outro, mas se estiver sem saber por onde começar, tente "isolar" o plot: a premissa e a estrutura usada para transmitir/desenvolver essa premissa. Isso vai se espalhar pelas personagens, seus arcos e relacionamentos. Antes de recomeçar com a estrutura, observe a premissa e a abordagem que você escolheu. Faça perguntas não só narrativas como emocionais: essa estrutura dá conta? Essa sucessão de ações e decisões reflete mesmo a força de sua história? Esse processo permitirá que você isole a trama em si e observe o ritmo, os arcos, a lógica e vários outros elementos. Assim, você enxerga claramente beats e cenas principais – não apenas por si mesmas, mas em relação umas às outras. A estrutura, então, vai pedir para reduzir certas cenas/beats repetidos, ou adicionar mais desenvolvimento emocional, etc. 4. Do maior ao menor: reforce ou repense o tema principal É normal não termos clareza ou certeza do tema principal de nossa história até reescrevermos algumas vezes. Porém, isso pode causar uma falta de foco, afetando o enredo, subtramas, funções de personagens e arcos de transformação. Ao escrever o primeiro tratamento, muitos desses elementos emergem de maneira instintiva ou desorganizada. Por isso, o segundo tratamento é um bom momento para escrever exatamente o que você achou atraente nessa ideia quando a teve pela primeira vez – ou seja, focar na discussão temática ou mesmo mensagem, se houver. Tente recapturar a emoção que você sentiu ao pensar na premissa e transforme esse tema em personagens, tramas, transformações. Ao encontrar o coração temático do seu roteiro, ele deverá guiar seu processo de corte e reescrita. Qualquer coisa que não contribua para o construir a discussão que você quer ou que não sirva diretamente à história deve (ou pelo menos pode) ser cortada. Pensar assim também ajuda a retirar ou ajeitar aqueles "buracos" na trama, que desaparecem enquanto aparamos o excesso. 5. Analise a jornada da protagonista A personagem determina a trama. Personagem e história estão tão intimamente ligados que, quando um deles muda, os dois elementos mudam juntos. Perguntas como “a protagonista pode só ir embora e tudo se resolve?” ou "essa outra personagem não pode ser incorporada na protagonista na forma de uma contradição interior?" devem ser feitas e respondidas já no início. A pergunta “o que está em jogo para a personagem?” também surgirá ao longo da reescrita, devendo ser respondida na premissa ou no Ato II. Outras perguntas mais complexas envolvem o caráter da protagonista: sua falha principal é realmente testada? Tem a ver com o tema? Como reflete esse tema, escolhe 'um lado' ou não? A protagonista escolhe a força e passa por uma transformação relevante? Ou prefere insistir na falha e continua a mesma pessoa? Sabendo que são questões difíceis de construir, nós temos um ebook focado justamente na construção de personagens mais complexas, que cabem em todo o tipo de narrativa. Outra coisa importante a se considerar na escrita do segundo tratamento é: às vezes, alguns eventos ou decisões que estão no roteiro não fazem sentido. Muitas vezes, isso pode ser parte do discurso do filme e tudo bem. Porém, se um leitor desse roteiro não consegue acreditar que uma das personagens faria algo que fazem, talvez esse seja um problema a se resolver numa segunda versão. A experiência emocional do enredo está funcionando? Sinto alguma coisa quando leio? Eu sinto as coisas certas? Um leitor de roteiro, bem como quem assistirá o filme ou série, quer sentir alguma coisa. Quais são os pontos de ressonância emocional no meu roteiro? Essa reflexão tem relação direta com a próxima dica. 6. Aposte no feedback especializado Sempre trazemos a importância do feedback em nossos textos. Um núcleo criativo, colega de profissão ou amigo produtor podem ser essenciais na hora de encontrar as potências e fragilidades dos seus projetos. Não é todo mundo que gosta de compartilhar seu primeiro tratamento. Tudo bem! Você pode fazer sua própria consultoria nesse primeiro momento. Porém, se escolher compartilhar, é importante ser seletivo/a. Não envie para um agente ou produtor em perspectiva ainda (salvo em casos específicos onde isso for diretamente requisitado). O motivo é: você com certeza vai melhorar sua história no segundo tratamento. Escolha roteiristas que você confia, que têm a ver com seu projeto ou que pelo menos podem ajudar a melhorar a narrativa de alguma forma. Consultorias especializadas também fazem parte dos serviços que oferecemos. É muito importante ouvir o feedback que as pessoas dão em geral, mas a parte “em geral” é fundamental. Pense no motivo pelo qual você está recebendo as notas ou retorno que está recebendo. Não olhe apenas para a nota, olhe para o que está por trás: é um sentimento vago ou a pessoa sabe do que está falando? Ela aponta para cenas específicas ou para a mensagem geral? Escolha seletivamente com o que você concorda e discorda. Reflita: "Isso serve para reforçar ou desenvolver o tema? Essa protagonista é realmente mais interessante?" e assim por diante. 7. Faça uma lista de mudanças ou objetivos Assim que você aceitar que seu primeiro tratamento não será perfeito, parta para objetivamente mudar algumas escolhas. Isso fica muito mais fácil com uma lista ou tabela de mudanças que você quer fazer. Grandes problemas narrativos são aqueles que uma simples mudança de cena ou diálogo não resolve. Pode ser estrutural, de personagem, um buraco na trama, uma sequência inteira que precisa ser reescrita, etc. Esses são os problemas que impedem que seu roteiro fique bom aos seus olhos e exigirão algum esforço para corrigir. Ou seja, são prioridades. Faça uma lista ou tabela dividida por atos e escreva os grandes problemas. Aí, você pode enumerar os detalhes que quer mudar, tipo diminuir a exposição de informações, um diálogo importante que pode ser melhorado, etc. Essa lista também pode conter objetivos narrativos maiores, por exemplo "Deixar o tema mais sutil" ou "Inserir mais elementos metafóricos", etc. 8. Não tenha medo de cortar ou fundir elementos Na lista de objetivos ou feedback do player, é possível que existam adições a serem feitas no segundo tratamento. Mais uma personagem, mais cenas, etc. Porém, pode ser um bom começo cortar os elementos que não caibam mais no desenvolvimento da protagonista, do tema ou da premissa. É relativo ao que falamos na dica número 2! Podem ser cortadas desde diálogos até cenas inteiras – sem medo, pois estão salvas lá no arquivo do seu primeiro tratamento. Pergunte-se honestamente a cada momento se algum elemento individual é absolutamente necessário. É possível que você veja o quão dispensável são algumas personagens, que podem ser fundidas ou cortadas, ou mesmo cenas inteiras periféricas ao discurso narrativo. Afinal, existe jeito "certo" ou uma fórmula para reescrita? A resposta é: não! Se você desenvolver um método individual de reescrita, vá em frente. Se tiver menos tempo para repensar tantas questões, reescreva apenas o básico ou o que foi pedido (no caso de uma encomenda). A ideia do segundo tratamento e dos posteriores é reforçar e encontrar a potência narrativa da sua história. O que você quer ver na tela? Que diálogos gostaria de ouvir? Qual a protagonista mais intrigante para você? Não tenha medo de mudar radicalmente e depois voltar a algumas decisões que você tinha pensado inicialmente. Lembre-se que, se precisar de ajuda, pode nos chamar para uma consultoria. Boa reescrita!
- 7 dicas para descrever melhor suas personagens no roteiro
Para além de "cabelos longos", existem diversas maneiras de descrever personagens no roteiro e captar a atenção de leitores. Confira nossas dicas! Se você fosse uma personagem, como se descreveria? Características físicas até podem ser relevantes para a narrativa, mas a personagem em si vai muito além delas. Muitas pessoas se apresentam dizendo "o que são": seus valores, profissão, objetivos na vida, etc. Mas não é sempre que nós ou as personagens têm essa clareza sobre si. Por isso, podemos pensar mais fora da caixa na hora de apresentar protagonistas, antagonistas, arquétipos e outras personagens no roteiro. Além de rabos de cavalo, barbas, um par de olhos castanhos brilhantes ou uma cicatriz no rosto, outras coisas podem descrever uma personagem sem que ela fale uma palavra. Já fizemos um texto sobre esse assunto, mas, para ajudar a refletir ainda mais sobre isso, traduzimos e adaptamos dois textos do site Screencraft (um de David Young e outro de Ken Miyamoto). Aproveitando o tema, conheça nosso novo ebook "A Personagem além das fórmulas", que conta com 112 páginas repletas de processos, dicas, reflexões, exercícios e recursos para conceber personagens narrativas interessantes! Apresentando personagens através de ações As primeiras cenas de sua protagonista, antagonista ou personagem relevante devem causar um impacto em quem lê. Não precisa ser nada extremo ou grandioso — basta ser potente e específico. E um dos elementos mais potentes na narrativa é a ação. Tomando o exemplo do filme "Sangue Negro" (There Will be Blood, 2007), de Paul Thomas Anderson, Ken Miyamoto faz uma análise de como o caráter, objetivo, falha e até mesmo seu destino narrativo. O filme conta a história de Daniel Plainview (Daniel Day Lewis), um garimpeiro da virada do século nos primeiros dias do negócio de petróleo. É quando ele falha, obtém sucesso e depois colhe os benefícios disso – não deixando ninguém ficar em seu caminho. O roteiro nunca oferece nenhum tipo de descrição de personagem para Daniel. DANIEL PLAINVIEW (atualmente com 30 anos) está, com picareta e machado, no meio do dia, em um calor de 43ºC no Novo México, procurando por PRATA. Não há nenhum sinal de descrição do personagem. Nem mesmo uma descrição de figurino. Por quê? É desnecessário. Sabemos que se passa em 1898 porque o roteiro nos disse isso. Então, assumimos que a maioria das pessoas teria uma ideia de como seria um garimpeiro naquela época. E assumimos que o departamento de figurino descobrirá os detalhes. Qualquer coisa além disso, para Miyamoto, seria um "desperdício de espaço em branco" na página. É claro que alguns detalhes podem ser importantes, caso a personagem venha a interagir com um chapéu (como o icônico chapéu de Jack Sparrow em "Piratas do Caribe"), uma blusa (como Fleabag no piloto de "Fleabag") ou algo assim. Mas, geralmente, uma descrição muito longa do figurino acaba confundindo a leitura ou perdendo foco narrativo. O roteiro de "Sangue Negro" também ignora a tentação de trazer backstory ao personagem. Por quê? Porque serão suas ações que definirão que tipo de personagem ele é. Na verdade, nos primeiros 15 minutos do filme, Daniel mal fala além de murmúrios para si mesmo. Mas ao final desses 15 minutos, sabemos exatamente quem ele é. Ação Definidora de personagem nº 1: Prospecção obsessiva Vemos uma imagem de Daniel em um poço de mina de prata, batendo com uma picareta de metal nas paredes de rocha dura com uma força quase obsessiva. Ele atinge a parede de pedra repetidamente enquanto as faíscas voam de cada ponto de impacto. Vemos que Daniel é impulsionado por um único objetivo obsessivo em muitos momentos diferentes neste local – encontrar prata. Ele nunca mostra fraqueza, apesar de todo o trabalho duro. Ele está lá para encontrar prata. Isso é tudo que importa. Depois de explodir parte da parede de pedra com dinamite, ele cai profundamente no poço por acidente, quebrando a perna no processo. Ele se afunda em auto-piedade? Desiste para ter certeza de que pode escapar e encontrar atendimento médico? Não. Daniel rasteja até o ponto de explosão para examinar as rochas que foram expostas. Quando ele vê pedaços de prata, ele murmura obsessivamente para si mesmo enquanto examina sua fortuna encontrada: Lá está ela. Lá está ela. Lá está ela. Essas ações mostram o que Daniel mais busca – sua fortuna. Esse é um grande traço de caráter que roteiros menores teriam se voltado para a descrição do personagem ou diálogo para se comunicar. Ação Definidora de Personagem nº 2: Impulso Incansável Sem perder o ritmo depois de ter encontrado sua fortuna, ele coloca pedaços de prata em sua camisa e começa a se puxar para cima do eixo com a perna fraturada pendurada no ar. Ele está com muita dor, mas ele é levado a alcançar sua fortuna. Encontrar as pedras prateadas não é suficiente. Ele precisa entregá-las em outro local (Silver Assay/Lease Office) para alcançar a riqueza que deseja. Daniel não apenas sai do poço com uma perna gravemente fraturada, mas também consegue se arrastar por mais de um quilômetro e meio pelo chão do deserto até uma cidade mineira local. Sabemos que Daniel chegará a qualquer extremo para ver o que quer que ele faça. Esse é outro traço de caráter comunicado apenas pela ação. Ação Definidora de Personagem nº 3: Carregando uma espingarda Ao longo dos primeiros 15 minutos, Daniel tem uma espingarda pendurada no ombro ou ao seu lado. Mesmo quando ele está sozinho no meio do deserto, a espingarda está perto dele. Isso nos diz que ele não confia em ninguém e não vai deixar ninguém ficar entre ele e sua fortuna. Daniel carregando uma espingarda também nos mostra que ele é inteligente. Ele sabe que, se outros garimpeiros virem sua descoberta, ele pode ter que se defender. Quando ele se deita no chão do Silver Assay/Lease Office, observando-os moer sua prata e preencher seu formulário de registro, sua espingarda está ao seu lado. Ele sabe que é um homem ferido e está pronto para ser atacado. Mas porque Daniel é tão obsessivo e motivado, está pronto para usar força letal para defender seus direitos. Ação Definidora de Personagem nº 4: Sempre em busca da próxima perspectiva É revelado que Daniel recebe $342,00 pela prata. Isso vale quase US $10.000 em dinheiro hoje. O roteiro também denota que ele pretende vender o local de prospecção, o que renderia ainda mais dinheiro. Em 1898, Daniel poderia facilmente viver com essa fortuna. Ele então compra uma casa ou fazenda para viver a boa vida por um tempo? Não. Ele investe o dinheiro em coisas maiores e melhores – um poço de petróleo e uma equipe. Ele não precisa mais prospectar por conta própria: agora pode pagar uma equipe de homens para ajudá-lo. E Daniel se torna cada vez mais inovador à medida que esboça planos para uma torre de perfuração mais eficiente. Isso nos mostra que ele nunca deixará de buscar cada vez mais fortunas. Primeiro, era ouro e prata. Agora, é petróleo. E sabemos que quando ele conseguir petróleo, ele só vai querer mais e mais. Ação Definidora de Caráter nº 5: Lealdade Como a equipe de Daniel pode ajudá-lo a obter mais fortuna, ele é leal a eles. Há uma camaradagem que demonstra com aqueles homens. Ele compartilha sua obsessão com eles. Agora, Daniel não carrega mais uma espingarda com ele e aparenta estar mais confortável. Quando um dos homens morre durante um acidente, Daniel acaba ficando responsável pelo filho bebê do homem. Agora, Daniel se importa com o bebê. Ele cuida dele e o cria como se fosse seu próprio filho. Algo interessante sobre esse fato é que Daniel o está usando para construir seu legado de fortuna: ele agora tem um herdeiro. Quando estiver mais velho, poderá continuar buscando sua fortuna passando os deveres físicos para a próxima geração. No entanto, vemos mais tarde que seu filho se volta contra ele em sua vida adulta e se torna um competidor. A reação de Daniel a isso é sua vontade obsessiva de derrotar todos e quaisquer concorrentes – até mesmo seu filho. Ele sente que o herdeiro traiu sua lealdade e essa acaba sendo a derrocada de Daniel. 7 dicas para apresentações de personagem mais intrigantes 1. Postura e comportamento Embora nem tudo sobre uma aparência física precise ser dito, existem alguns traços visíveis que carregam algum significado dependendo da personagem que você está descrevendo. Ao apresentar uma nova pessoa à sua história pela primeira vez, pense em como ela se comporta. Nem toda personagem exigirá esse pensamento, é claro, mas as principais geralmente sim. Ela é uma pessoa orgulhosa de si? Uma pessoa perigosa? Uma pessoa subserviente? Como se movem em seu mundo, confortáveis ou não? Sua postura geral é uma maneira interessante de construir isso. Alguém com "má postura" será visto como sobrecarregado ou possivelmente um tipo de pessoa mais intrigante. Essa é uma das várias dicas que mencionamos no ebook "A Personagem além das fórmulas". 2. Higiene (Pessoal ou Não) Sobre o assunto de apresentações de personagens, há outro caminho não tradicional quando se trata de nomear traços físicos: você pode falar sobre a limpeza ou sujidade de sua aparência. Essa pessoa está extremamente desleixada ou parece imaculada? Seu cabelo é oleoso, como o de um cantor grunge? Sua personagem pode até não ser uma pessoa suja, mas quem sabe sua casa é extremamente bagunçada e isso traz um contraste curioso com sua aparente personalidade. 3. Profundidade das reações emocionais/físicas Você não precisa fazer isso em todas as cenas, mas, de vez em quando, é significativo informar o leitor sobre a intensidade de uma reação emocional ou física que seu personagem pode ter a certos estímulos. O carinho deixa sua protagonista fisicamente desconfortável? Existe algum tipo de pequeno inconveniente que deixa seu antagonista muito mais irritado do que pessoas "normais" ficariam? Mesmo a falta de profundidade pode ser reveladora, como um anti-herói que parece não reagir à descoberta de uma terrível traição. Lembre-se que as pessoas são imprevisíveis até certo ponto. Portanto, se tiver um motivo narrativo para essa reação incomum, você tem todo o direito de surpreender seu público com ações/reações desproporcionais de seus personagens. 4. Atividades habituais e hobbies Conforme falamos também em nosso ebook, hábitos são inerentes a qualquer ser humano - e personagem. Algumas pessoas podem ser mentirosas habituais, mas se você está buscando versões não verbais desse método de caracterização, pode optar por outros hábitos reconhecíveis: vícios em substâncias; atitudes de manipulação do outro ou até mesmo hábitos moralmente neutros, como estalar os dedos, mascar chiclete, encontrar seus amigos em um café específico ou recorrências involuntárias como episódios de narcolepsia. Hábitos e outros comportamentos recorrentes dizem muito sobre as pessoas e ajudam a destacá-las. Afinal, é isso que estamos tentando fazer! 5. Definir o foco de sua atenção Toda personagem tem um desejo ou uma necessidade. As mais importantes para a narrativa tornam esses objetivos e necessidades conhecidas ao longo da história, mas todas deveriam ter algo que desejam e precisam. É por isso que elas sempre têm sua atenção voltada para algo específico. Aquela personagem secundária que você escreveu que é um paquerador detestável? Provavelmente, vai estar regularmente olhando para outras personagens, procurando o próximo caso ou o próximo ataque de auto-validação. A heroína da sua história, que está tentando tirar seus pais da prisão, vai se concentrar no grande objetivo "provar a inocência de seus pais". Isso significa que ela estará prestando atenção quando as pessoas mencionarem seus pais, mesmo quando pistas incriminatórias começarem a aparecer. Seja qual for o exemplo, a questão está na motivação. Isso é válido para qualquer cena, não só de apresentação! 6. As companhias determinantes Existe um ditado que praticamente diz: "Uma pessoa é julgada pela companhia que mantém". No cinema ou TV, isso é muito real. As pessoas ao seu redor sempre podem ser usadas para decifrar a sua própria personalidade até certo ponto, seja você parecido com elas ou o completo oposto. Essa é a ideia por trás de conhecer as personagens que cercam sua protagonista ou antagonista também. Uma personagem cercada por amigos abusivos pode ser o clássico arquétipo de valentão também – ou então alguém emocionalmente atrofiado como resultado de todo esse abuso. O que você precisa tirar disso é uma conclusão: com base em quem sua personagem tem sempre por perto, elas terão o traço X ou o traço Y. Pense em narrativas como "Seinfeld", "Sintonia" ou "Euphoria". Isso também pode ser uma dedução por parte do leitor que no futuro será provada errada, como em "O Clube dos Cinco" (The Breakfast Club, 1985) por exemplo. O bom é que existem muitas respostas "certas" para esse tipo de exercício social. 7. Fatos e características únicas Há coisas sobre uma personagem que se destacam por sua natureza incomum. Quem sabe, dê a elas uma qualidade descritiva metafórica, que faça alusão a uma ideia estranha ou diferente do esperado. Pensando em um exemplo qualquer, uma personagem que é veterinária e cujo rosto é descrito como "parecido com um buldogue humano" ganha uma descrição muito específica e irônica. O mesmo pode ser dito para o vilão em sua história que é identificado apenas pelo penteado icônico e inesquecível, como Zorg (Gary Oldman) em "O Quinto Elemento" (1995). Viu quantas possibilidades diferentes de repensar suas apresentações de personagens? Aproveite para saber mais sobre isso participando de nosso Grupo Fechado para apoiadores do Catarse, onde divulgamos conteúdo extra, promovemos encontros e muito mais.
- Escrevendo spec: estratégias, mitos e dicas
O que é e de onde veio? Ganho alguma coisa escrevendo? Descubra tudo isso e mais 5 dicas importantes para escrever um bom spec Você já deve ter lido em algum lugar sobre roteiristas que "escreveram um spec", seja qual for o contexto. Esse é um material muito comum no mercado hollywoodiano que acabou vindo para cá com significados diferentes. Mas o que realmente significa escrever um spec? É um material interessante para ser escrito? Vale a pena investir tempo nisso? Como sempre, não viemos aqui afirmar que existe uma única resposta certa. Porém, em nossa experiência, um spec é o tipo de material de estudo que pode levar sua escrita e entendimento narrativo para outro nível. Quer entender melhor? Acompanhe nossa matéria! O que é um spec? O termo roteiro "spec" é um termo em inglês que significa "speculative screenplay", ou roteiro especulativo. Possui alguns significados diferentes dependendo do contexto. No geral, é um roteiro escrito "fora do sistema de estúdio" e que o roteirista decide fazer por conta própria. É diferente de um roteiro de filmagem ou de um roteiro de produção, pois há mais foco na história em si, enquanto descrições de movimentos da câmera e outros aspectos de direção não são indicados. No mercado hollywoodiano, o propósito de um spec é mostrar o talento narrativo de um roteirista. Por isso, quando se fala em spec de longa-metragem, pode ser entendido simplesmente como um roteiro original. Já na televisão, o spec tem um significado diferente. É um episódio de "amostra" sobre alguma série de TV atual que prova que você pode escrever na voz da série e adaptar as personagens a diferentes narrativas. Nos EUA, houve uma época em que specs de TV eram muito procurados por emissoras, que inclusive compravam os roteiros e produziam como parte da série. Hoje em dia, isso não é mais tão comum. Ainda assim, no Brasil é mais comum falar spec para esse último tipo – que é uma espécie de "fanfic" da série, mas com propósitos de exercício narrativo. Para efeitos desta matéria, é sobre esse tipo de spec que iremos falar, e não sobre roteiros de longa-metragem originais. Preciso escrever um spec para entrar no mercado de roteiro? No contexto atual do mercado audiovisual, a resposta é não. Mas isso não quer dizer que não seja um bom material de escrita ou mesmo um bom sample. Ao escrever um spec, roteiristas exercitam milhares de músculos narrativos, mesmo sem o objetivo de vender o roteiro em si. Ou seja, o spec aqui no Brasil acaba tendo vários motivos e objetivos diferentes. Um deles é o que mencionamos antes, de ter um bom sample. Mas o que é isso? Spec vs sample Sample nada mais é do que o termo utilizado para "amostra" de roteiro. É muito comum que se peçam samples de escrita em candidaturas para vagas de trabalho em roteiro ou concursos internacionais. Esse exemplo de escrita serve para demonstrar seu conhecimento narrativo e de formatação, assim como sua habilidade dentro das convenções audiovisuais. Um spec pode servir como um sample, ainda que produtoras e streamings atuais prefiram ler samples originais. Mitos e motivos da escrita do spec Ok, o spec pode ser usado como uma amostra de roteiro. O que mais? Talvez o motivo mais relevante para escrever um spec é o exercício de escrever uma narrativa "plástica" em uma voz que já existe. Quando você mergulha nas regras, ritmos e personagens de uma série já consolidada, sua escrita se demonstra adaptável e ideal para, por exemplo, compor uma sala de roteiro. O spec propicia isso. O desafio de fazer a "sua versão" de um episódio de uma série obriga a compreensão de novas estruturas, ritmos de cena, cortes e diálogos. Aí, é muito importante não só assistir a série como também ler seus roteiros, quando possível. Assim, os detalhes e as cadências narrativas ficam mais aparentes e você vai se sentir mais próximo da escrita original. Um mito ao redor do spec é: se sou roteirista iniciante, esse é o único material que "importa" desenvolver. Essa ideia é mais comum em Hollywood, mas não podemos pensar assim. Pelo contrário: um material original - projeto, sinopse, tratamento - vale mais do que mil specs. Então, será que escrever o seu é uma perda de tempo? Claro que não! Esse é outro mito. Além de tudo o que já mencionamos, o spec de um episódio de série pode ser útil para treinar a escrita em outro idioma (escolhendo uma série norte-americana, por exemplo), inserir novas personagens em uma série já consolidada, ter um material especificamente elaborado no formato de um episódio para receber feedback de parceiros e outros motivos válidos. O ideal é desenvolver seus materiais originais primeiro, separando um sample também original, para depois pensar em escrever um spec. Quer dicas para ajudar nisso? Confira! 5 dicas importantes para escrever um bom spec 1. Escolha uma série que você gosta muito A forma mais interessante e gratificante de escrever um spec é escolher uma série que você gosta. A familiaridade com o estilo, tom e personagens deve transparecer nas páginas. Geralmente, a ideia é escolher uma série atual ou recente. É importante que você escolha um momento na série em que as personagens estejam minimamente estabelecidas, com suas vozes, conflitos e personalidades mais sedimentadas. Porém, se for seu objetivo for reescrever o piloto da série, vá em frente! O objetivo do spec é se manter fiel ao tom, ritmo geral e à trajetória das personagens, mostrando que você sabe como estruturar um roteiro. Se a escrita for para estudo próprio e desenvolvimento de sua escrita, escolha algo que vá ser divertido! Tristezas já temos de sobra nessa carreira. 2. Escolha uma trama estratégica - e memorável Um spec é útil não só para mostrar que você sabe construir narrativas "em outras vozes" ou exercitar algo no tom que você gostaria muito de escrever um dia. Ele serve também para escolher ativamente quais atributos da sua escrita você quer destacar para quem vai ler. Por isso, é importante que você identifique algo que se encaixe na série, mas que seja estrategicamente mais aproximado do tipo de escrita que você mais sabe fazer. Por exemplo, nossa co-fundadora Jessica Gonzatto escolheu escrever um spec de "Succession" (2018, HBO). Essa é uma série extremamente complexa em termos de tom, personagens, temáticas e ritmo. Não sabendo tanta coisa assim sobre manobras de negócios, aquisições empresariais ou a vida de bilionários, ela trouxe um foco maior nas relações entre as personagens e também no humor ácido. Se utilizando de um espaço memorável, que seja impactante na narrativa, ela explora a vulnerabilidade, a parceria e a rivalidade entre personagens, além de situações onde a ironia brilha forte. Esses elementos já fazem parte do universo de Succession, mas tiveram um destaque maior por serem mais próximos do que ela domina em sua escrita. Sendo assim, escolha uma dinâmica memorável para quem ler, que seja diferente do "esperado" da série e também que foque nas suas habilidades como roteirista: diálogos rápidos, atmosfera de tensão ou então domínio de algum gênero predominante. 3. Escolha um momento mais avançado na trama da série Como mencionado, você tem total liberdade quanto a escolha do momento narrativo para abordar no spec. Porém, tudo fica mais fácil com personagens já bem estabelecidas, tendo suas personalidade e conflitos já reconhecíveis pelo público leitor. Isso vai economizar muitas cenas e diálogos de introdução e dar mais liberdade para experimentar dentro dos "limites" da série. Com essas bases narrativas, você pode propor um episódio bem diferente dos demais, abordando outros temas, gêneros ou mesmo linguagens. Um bom exemplo de spec é o episódio "Connection Lost” (S6E16) da série "Família Moderna" (Modern Family, 2009-2020). Diferentemente da linguagem de mockumentary do resto da série, esse episódio foi feito todo em screen life e testa os limites do formato. 4. Exercite bem a voz das personagens Parece algo simples, mas não é. Mesmo se você assistir a série dez vezes e ler todos os roteiros, diálogos ainda podem ser desafios. Por isso, é bom lembrar que o spec precisa ser encarado como um exercício, totalmente sem pressão de ser "perfeito". Exercitar a voz das personagens quer dizer criar com consciência de que elas precisam ser diferentes. Cada pessoa tem um objetivo diferente quando fala, um modo de dizer as coisas, gírias, ênfases, subtexto, etc. Escreva e reescreva até achar o equilíbrio entre entrega de informação, poesia narrativa, especificidade e intenção (coisa pouca…). Isso nos leva à dica final. 5. Reescreva (algumas vezes) Como todo material escrito, o spec precisa ser retrabalhado pelo menos uma vez. Não é comum acertarmos o tom de todas as personagens de primeira, nem o ritmo ou mesmo a escolha das tramas. Ao reescrever, "levante" ou "abaixe" o tom de algumas escolhas diegéticas, traga mais vida aos diálogos e não tenha medo de apagar uma cena inteira por já não achar mais que representa tão bem aquela personagem. É também um processo que pode ocorrer depois de feedbacks, como um segundo exercício. Se o seu spec não tiver um objetivo profissional (por exemplo, algum outro profissional pediu para ler e avaliar), não precisa gastar muito tempo nisso. A ideia é você se sentir desafiado(a) e aprender muito sobre os mecanismos das suas tramas favoritas. Lembre-se: um spec, hoje em dia, vale muito mais para o desenvolvimento pessoal como roteirista do que para vender seu trabalho. Se precisar escolher, priorize escrever um piloto ou longa-metragem original, para só depois trabalhar em um spec. O spec ajuda muito também a revelar e desmistificar várias crenças que temos a nosso próprio respeito. Você acha que "nunca vai conseguir" escrever tão bem quanto roteiristas de sua série favorita? Acredita que não tem nada a ver com comédia, ou então com thriller policial? Experimente escrever um spec e veja como tudo isso muda no final do processo. Afinal, essa estratégia narrativa ajuda a trazer o que mais admiramos para mais perto de nós, tendo também um papel importante na autoconfiança como roteiristas. Boa escrita!
- Raio-X: “Harina”, a esquete que virou série, com Pedro Esteves
O roteirista do Porta dos Fundos conta como foi adaptar a esquete brasileira para a realidade mexicana em série original De esquete de 2 minutos à série original com 8 episódios: você conhece a trajetória de sucesso de “Harina”? Criada e escrita por Pedro Esteves e Carlos Reichel, em “Harina”, primeira produção internacional do Porta dos Fundos (conhecida como Backdoor), acompanhamos a dupla formada pelo detetive Harina e a policial Ramírez, em uma intensa investigação atrás do seria killer conhecido como “El Cancelador”, um maníaco que assassina influencers. A série, que está disponível na plataforma da Amazon Prime Video e terá sua estreia no Comedy Central Brasil no dia 19/06 (domingo), começou como uma pequena e hilária esquete para o canal Porta dos Fundos intitulada “Farinha”, logo se transformando em um grande fenômeno. Encabeçando todos esse processo de criação e adaptação estão Carlos Reichel, roteirista-chefe da equipe de roteiro de Bugados no Gloob que foi chamado pela equipe do Porta para trabalhar exclusivamente nessa série; e o roteirista e ator Pedro Esteves, que divide com a gente um pouco dessa história e os desafios de adaptar um sucesso do Porta dos Fundos para o formato televisivo sem perder sua essência. Quem é Pedro Esteves? Aos 17 anos de idade, Pedro Esteves mudou-se para o Canadá, onde passou a buscar oportunidades como ator. Esteves conta que, ainda no Canadá, dedicou-se a aperfeiçoar seu ofício, trabalhando como figurante em diversos filmes, além de investir em cursos de atuação. “Apesar de sempre tirar muito prazer da criação, de inventar coisas, cheguei no Canadá querendo ser ator”, resume. Seu retorno ao Brasil não veio a partir do audiovisual - Pedro trabalhava em uma agência de intercâmbio enquanto produzia vídeos cômicos para a internet paralelamente. “Era o auge do Porta dos Fundos, que estava no seu quarto ano de existência. Eu sempre gostei desse formato de ‘esquete’”, revela Esteves, que afirma se inspirar em programas como “Chappelle’s Show” e “Key and Peele”. “Era criar, gravar e ficar mais atrás das câmeras. Eu comecei a tirar esse gosto maior pela criação e fui me aproximando de pessoas com essa intenção.” - Pedro Esteves Sua entrada no Porta dos Fundos foi através de indicação do roteirista Gabriel Esteves (que não é seu parente, apesar do nome), parte da equipe original de criativos da produtora. Segundo Pedro, depois de muito insistir para que Gabriel lesse algumas das suas esquetes, enfim surge a oportunidade de produzir conteúdos para o Porta. De lá para cá, Pedro está há mais de 5 anos no Porta dos Fundos e hoje, além de escrever esquetes, faz supervisão criativa para a divisão do México. “Eu entrei no Porta com 30 anos de idade. Fui me encontrando ao longo da vida, dos anos. Eu vejo muita gente perdida, gente que trabalha com arte… Eu noto que hoje em dia as pessoas têm mais pressa em saber o que querem da vida, querem tudo já pronto. Essas coisas demoram mesmo. Às vezes você se encontra muito cedo, às vezes não, mas você vai se moldando e descobrindo novas coisas.” - Pedro Esteves O vídeo “Farinha” e o sucesso internacional Esteves deixa bem claro que cada roteirista do Porta dos Fundos tem seu próprio estilo, algo que acaba influenciando bastante o seu processo criativo. Por ter migrado para o Canadá muito cedo, Esteves conta que acabou encontrando sua voz principalmente através de referências cinematográficas e suas possibilidades. Para a esquete “Farinha”, a inspiração parte de um clichê do cinema internacional - a clássica cena do policial experiente que identifica a cocaína passando a droga na gengiva, sem qualquer constrangimento. “Ninguém mostra esse investigador 10 minutos depois que ele usou cocaína. Foi aí que eu pensei nessa cena”, completa. A esquete, que parte de uma premissa simples e divertida, como o próprio roteirista afirma, dialoga muito bem com a estrutura dos vídeos do Porta dos Fundos, onde a situação escala em direção ao absurdo. Pedro Esteves conta que houve muita improvisação dos atores durante a cena, adicionando elementos cômicos e físicos. Segundo Esteves, Rodrigo Magal, que assina a direção do vídeo, também trouxe um toque especial para a criação da esquete, como a ideia de quebra da quarta parede - um elemento muito utilizado em séries clássicas como “The Office” e “Veep”. Quando o vídeo se torna uma série, esse artifício da quarta parede é incorporado à narrativa. “A série acontece em volta de um vídeo real gravado durante uma perícia”, conta Esteves. O processo de adaptação Há mais de 3 anos, o Porta dos Fundos adapta seus vídeos para diferentes mercados - entre eles, o México. Foi o caso da esquete “Farinha” (ou, em espanhol, “Harina”), que logo se tornou um sucesso. “Quando o vídeo foi adaptado, ele transcendeu o canal e virou um meme nacional. É o mais visto do Porta dos Fundos de todos os canais”, comenta Esteves. Hoje, o vídeo passa a marca das 62 milhões de visualizações. Com a repercussão, naturalmente surgiu o interesse em transformar o projeto em série de ficção. As gravações, porém, foram interrompidas com os atrasos impostos pela pandemia do COVID-19, retomando apenas dois anos depois. O atraso e as expectativas sobre o projeto trouxeram, de início, uma reação adversa por parte do público. “Quando anunciaram para o público mexicano que a série do tenente ‘Harina’ iria existir, o feedback não foi positivo”, conta Esteves. Havia a impressão de que, nas palavras de Pedro, eles iriam “requentar um meme de 2019 para uma série original”. Além disso, segundo o roteirista, o público esperava um tom mais exagerado do humor, um caminho que não foi trilhado pela equipe. “O desafio era pegar uma personagem de uma esquete cômica de 2 minutos e meio e dar uma vida para ela, uma humanidade, um drama, uma história. E a gente fugiu da comédia pastelão. A série é quase uma dramédia com suspense.” - Pedro Esteves Da batalha do tenente com o vício em drogas à luta para não perder a guarda da filha, são muitos os elementos que conferem profundidade à série. E, já no lançamento, “Harina” foi muito bem aceita pelo público. Pedro Esteves conta que “depois da estreia da série, todos os comentários eram assim: ‘achei que seria uma merda, mas me surpreendi muito. A série está excelente!’”. “As pessoas não esperavam nada e a gente entregou bastante”, completa. Dois meses depois da estreia de “Harina”, a série segue disputando espaço no top 3 das séries mais vistas no México pela Amazon Prime Video, alcançando até mesmo o top 10 norte-americano. Com a estreia no Comedy Central Espanha, “Harina” foi responsável por subir a audiência do canal em 60%, dando uma prévia do sucesso que deverá fazer aqui no Brasil. Por fim, Pedro Esteves conta que a série foi escrita integralmente em parceria com Carlos Reichel e seus estilos se complementaram para alcançar o sucesso que foi. Os roteiros, que foram inicialmente escritos em português e traduzidos posteriormente para o espanhol, sofreram algumas mudanças para melhor se adaptar aos elementos culturais mexicanos - um trabalho que, como supervisor de conteúdo da Backdoor México, Esteves está mais do que acostumado. Antes da sua estreia no Comedy Central, “Harina” pode ser assistida na íntegra no Brasil através da plataforma Prime Video. Confira o trailer:
- Conhecendo as convenções do thriller
Como construir um thriller bem sucedido? Confira nossas dicas e 13 convenções para construir uma narrativa nesse gênero Filmes, séries e livros de thriller são populares por algumas boas razões. Esse gênero combina o suspense policial com o perigo de uma história de terror, muitas vezes brincando com as emoções do público e construindo personagens inesquecíveis. Porém, muitas vezes, roteiristas podem se confundir nas questões mais básicas do gênero, como convenções, ferramentas e expectativas por parte de espectadores. Embora não haja uma maneira infalível de escrever um thriller de sucesso, existem maneiras de garantir que sua história esteja utilizando todas as convenções e sendo elaborada em cima de uma boa estrutura. Para ajudar a pensar sobre seu thriller, trazemos algumas dicas traduzidas e adaptadas da editora literária Savannah Gilbo (leia os textos originais aqui e aqui), além de outras questões narrativas bem importantes sobre o gênero. Savannah demonstra como essas convenções se manifestam em adaptações populares: "O Silêncio dos Inocentes" (The Silence of the Lambs, 1991), "Louca Obsessão" (Misery, 1990) e "Garota Exemplar" (Gone Girl, 2014). Confira! O que são "cenas obrigatórias" e "convenções de gênero''? Convenções são um conjunto razoavelmente bem definido de papéis, cenários, eventos e valores que são específicos de um gênero. São coisas que o público intuitivamente espera que estejam presentes em uma obra de ficção de gênero, quer percebam conscientemente ou não. Cenas obrigatórias são os principais eventos, decisões e descobertas que movem a protagonista em sua jornada. Enquanto não são necessariamente obrigatórias em filmes autorais, nas jornadas clássicas, essas cenas-chave evocam reações emocionais no público. Quando combinadas com as convenções do seu gênero, trarão ao espectador a experiência que está procurando. O que é um thriller? Muitas pessoas costumam confundir thrillers com mistérios, mas existem algumas diferenças entre os dois gêneros. Em um mistério, a personagem protagonista precisa descobrir quem cometeu um crime que já aconteceu. O(a) detetive leva a história adiante enquanto tenta descobrir a identidade do criminoso, como em histórias de Agatha Christie. Já um thriller gira em torno de um crime que está prestes a acontecer… a menos que a personagem protagonista possa impedi-lo. Em um thriller, o público geralmente sabe quem é o assassino/criminoso desde o início, muitas vezes acompanhando enquanto ele se prepara para realizar o crime. Ao contrário dos mistérios, os thrillers são conduzidos pela ação do antagonista, mesmo que não seja o ponto central do arco narrativo. Thrillers podem ter tons ou estilos variados, ser ambientados em qualquer lugar ou época e ter vários níveis de perigo ou violência. Podem incluir diferentes subtramas, desde que a busca para ser mais esperto e parar a antagonista continue sendo o foco principal do filme. 4 subgêneros populares do thriller Existem vários subgêneros que se utilizam de convenções e ritmos do thriller, podendo articular essa sensação de perigo e suspense através de diversas linguagens. Os subgêneros mais populares incluem: Thrillers de terror: histórias de suspense clássicas que têm abordagem aterrorizante e grotesca. Muitas histórias de terror incluem elementos sobrenaturais, embora também se utilizem de monstros, alienígenas e espíritos malignos. Thrillers legais: são thrillers que acontecem dentro do sistema judicial. São muito populares no cinema, TV e também literatura. Thrillers psicológicos: o suspense psicológico encontra o terror na loucura e na paranóia. "Psicose", de Robert Bloch, que ficou famoso pela adaptação cinematográfica de Alfred Hitchcock, é mais uma história de doença mental do que de assassinato em si – embora apresente eventos terríveis. Thrillers épicos: um thriller épico geralmente envolve riscos muito altos. Em um thriller épico como "A Dança da Morte" (The Stand), de Stephen King, a própria humanidade está em perigo. O mesmo vale para a série "The Walking Dead", por exemplo. As 13 principais convenções de um thriller 1. Um crime O gênero thriller precisa lidar com crimes. Às vezes, a antagonista já cometeu outros crimes antes de entrarmos na história – por exemplo, um serial killer. Na maioria dos casos, a personagem protagonista está sentindo a ameaça de um crime que a antagonista planeja cometer. Estudos de caso: Em O Silêncio dos Inocentes, Catherine Martin está desaparecida e o FBI acha que ela pode ter sido sequestrada por um serial killer que eles chamam de Buffalo Bill. Em Louca Obsessão, Annie Wilkes sequestra o famoso autor Paul Sheldon e o mantém refém em sua casa. Seu crime não é totalmente realizado até que o editor de Paul chame a polícia local perto da casa de Annie. Em Garota Exemplar, Nick volta para casa do bar e descobre que sua esposa, Amy, desapareceu. 2. Uma ou várias vítimas Podem incluir cadáveres, reféns ou pessoas desaparecidas. Estudos de caso: Em O Silêncio dos Inocentes, Buffalo Bill está mantendo Catherine Martin como refém em um poço em seu porão. Ele é um serial killer, então houve outras vítimas antes de Catherine Martin – e haverá mais vítimas se ele não for detido. Em Louca Obsessão, Paul Sheldon está sendo mantido em cativeiro por Annie Wilkes. Ele é a principal vítima desta história, embora fique claro que esta não é a primeira vez que Annie prejudica os outros. Perto do final, Annie também mata o xerife local. Em Garota Exemplar, parece que Amy é a vítima porque está desaparecida. No meio da história, descobrimos que Amy está viva e que está tentando incriminar seu marido, Nick, por seu assassinato. Nesse ponto, Nick se torna a vítima. Os ex-namorados de Amy também são vítimas. 3. Antagonista perigosa A personagem antagonista em um thriller não pode ser extremamente racional. Elas podem ter o objetivo de aniquilar, devastar ou obter poder às custas de outros. São inteligentes e incrivelmente perigosas. Às vezes, são mestres do crime, ou então assassinos em série. Num thriller puro, geralmente são humanos. Estudos de caso: Em O Silêncio dos Inocentes, Buffalo Bill é o antagonista “mestre”. Ele está obcecado em fazer seu “terno humano” e não pode ser racionalizado. Ou seja, não vai parar de matar até que seu projeto esteja completo. Em Louca Obsessão, Annie Wilkes é delirante e obcecada pelos personagens fictícios dos romances de Paul Sheldon. Ela não consegue lidar com o fato de Paul “matar” Misery Chastain e o força a reescrever o destino de Misery em um novo rascunho. Em Garota Exemplar, Amy está um passo à frente de Nick e da polícia o tempo todo. Ela teve muito tempo para fazer seu plano mestre e plantar todas as pistas para incriminar Nick. Toda a cidade e a nação acreditam que Nick a matou, já que a maioria das mulheres desaparece por causa de seus maridos. Perto do final da história, Nick tem um vislumbre de seu passado manipulador quando entrevista os ex-namorados de Amy. 4. Um protagonismo forte Sua personagem principal precisa ser atraente e poderosa, no sentido narrativo. No gênero thriller – assim como na vida real – um conflito raramente é tão simples quanto “bem vs. mal”. Bons thrillers geralmente apresentam protagonistas falhas e complexas. Por um lado, sua protagonista deve ser forte ou habilidosa o suficiente para superar os obstáculos que inevitavelmente enfrentará. Por outro lado, as pessoas se relacionam com heróis imperfeitos. Ter uma protagonista com falhas aumentará a tensão e os riscos de sua história, além de se encaixar em uma trama clássica de correção/piora. Antes de escrever, pense em elementos de backstory da sua protagonista. Que habilidades excepcionais ela tem? Quais são suas fraquezas e defeitos? Qual a sua jornada emocional através do filme? Geralmente, as questões escolhidas precisam ter relação com o tema principal do filme. 5. Cena: os riscos se tornam pessoais Aconteça o que acontecer nessa cena, você precisa deixar claro que há algo pessoal em jogo para a sua protagonista. Por exemplo, ao se envolver com esse crime, agora têm algo pessoal a perder ou ganhar – e isso depende de impedir a antagonista de cometer outro crime. Então, as apostas agora são pessoais para sua protagonista. Essa cena normalmente ocorre no final do primeiro ato, cimentando o caminho da sua protagonista para o segundo ato (em resposta ao Incidente Incitante). Na teoria de Jill Chamberlain, 'The Nutshell Technique', é quando a protagonista faz uma escolha, baseada em seu caráter, que não tem mais volta e a catapulta nas peripécias do segundo ato. 6. Pistas e red herrings Ao longo da história, a protagonista segue pistas para encontrar e/ou prender a antagonista. Algumas dessas pistas são “verdadeiras”, que levam o protagonista mais perto da verdade, mas a maioria são becos sem saída ou pistas falsas que temporariamente desorientam a protagonista e o público. Estudos de caso: Em O Silêncio dos Inocentes, Clarice segue uma trilha de pistas (a maioria dadas a ela por Hannibal Lecter) para descobrir a verdadeira identidade e paradeiro de Buffalo Bill. Em Louca Obsessão, Paul encontra pistas na casa de Annie que o ajudam a entender sua verdadeira natureza. O xerife local segue uma trilha de pistas que o leva à casa de Annie, onde Paul está sendo mantido em cativeiro. Em Garota Exemplar, Amy deixou para Nick uma “caça ao tesouro” cheia de pistas não apenas para incriminá-lo, mas para ajudá-lo a perceber que está sendo incriminado. 7. Cena: o caráter maquiavélico do antagonista É interessante que exista o momento em que uma ou mais personagens falam sobre o brilhantismo e perigo da personagem antagonista. Isso pode ser mostrado em uma conversa, por meio de cartas, por meio de um artigo de jornal, na TV, etc. Às vezes, isso também acontece na forma de uma revelação em que a protagonista junta informações e percebe que tem um verdadeiro vilão em suas mãos, pior do que imaginava. Esse momento é importante para deixar bem claro quais são os riscos que todas as personagens correm, bem como trazer sensação de medo ou nervosismo no público. Estudos de caso: Em O Silêncio dos Inocentes, esse “discurso” é proferido por Jack Crawford e Clarice enquanto andam juntos no carro. Jack e Clarice conversam, e ela afirma que Buffalo Bill "tem força física real combinada com o autocontrole de um homem mais velho. Ele é cauteloso, preciso. E ele nunca é impulsivo. Ele nunca vai parar. Ele tem um gosto real por isso agora. Ele está ficando melhor em seu trabalho”. Em Louca Obsessão, Paul Sheldon encontra um álbum de fotos com recortes de jornais detalhando todos os assassinatos de Annie e como ela foi demitida de seu emprego de enfermeira. Esses recortes, além do comportamento de Annie, mostram a Paul quem ele realmente está enfrentando. Em Garota Exemplar, Amy conta para o público como ela armou contra Nick, falando sobre todas as suas mentiras e planos ardilosos. 8. O MacGuffin Este é um elemento muitas vezes esquecido, mas que faz toda a diferença em como o público enxerga a personagem antagonista. Um MacGuffin é o objeto de desejo da antagonista – o que ele ou ela está tentando obter, realizar ou alcançar ao longo da história. Normalmente, o crime no início da história contém alguma pista sobre o MacGuffin. É interessante pois, dependendo do tema da história, esse objetivo pode ser algo "relacionável" ou que faça muito sentido para o público, mas que a antagonista tente atingir por meios moralmente nocivos. Em sua Masterclass sobre escrita de thrillers, o autor Dan Brown (O Código Da Vinci; Anjos e Demônios) explica que se utiliza muito disso quando constrói suas antagonistas. Ele sempre procura a área "cinza" do universo ou temática que vai explorar, definindo sua personagem antagonista pela máxima: "a ação errada, por razões corretas". Estudos de caso: Em O Silêncio dos Inocentes, Buffalo Bill quer criar um “traje de mulher” de carne humana – esse é o seu MacGuffin. Em Louca Obsessão, Annie quer que Paul Sheldon e Misery Chastain façam parte de sua realidade. Ela captura Paul, mas rapidamente descobre que ele matou Misery em seu último romance. Seu novo objetivo é fazer Paul reescrever o destino de Misery e essencialmente trazê-la de volta à “vida”. Em Garota Exemplar, Amy quer incriminar seu marido por assassinato porque ela sabe que ele está traindo ela. Em Inferno (2016), o principal antagonista de Robert Langdon, Bertrand Zobrist, é um bilionário mentalmente instável que acreditava que era necessário reduzir a crescente população da Terra. Porém, para isso, ele elabora um vírus letal. 9. Um metamorfo (shapeshifter) Um arquétipo presente também em outros gêneros, um metamorfo é uma personagem que diz uma coisa e faz outra, impactando diretamente na missão do protagonista de parar o antagonista. Pode ser para o bem ou para o mal. Estudos de caso: Em O Silêncio dos Inocentes, Dr. Chilton finge ser um “ajudante”, mas na verdade tem sua própria agenda. Em Louca Obsessão, Annie oscila entre a doce “fã número 1” de Paul e uma psicopata imprevisível e violenta. Em Garota Exemplar, Amy começa como a vítima e muda para o papel de antagonista no meio da história. Em Inferno, a Dra. Sienna Brooks vai de aliada à antagonista, por esconder seu real relacionamento com Zobrist. 10. Um Ticking Clock Outro elemento presente em diversas narrativas, o ticking clock é fundamental no thriller. É algum tipo de prazo para a protagonista descobrir quem é a antagonista e de fato impedi-la de causar mais danos. Estudos de caso: Em O Silêncio dos Inocentes, Clarice sabe que Buffalo Bill normalmente mata suas vítimas em três dias. Então, se eles não encontrarem Catherine Martin antes dos três dias, ela morrerá. Em Louca Obsessão, Annie diz a Paul que planeja matar os dois depois que ele terminar de escrever o livro. Em Garota Exemplar, Nick é um suspeito e deve descobrir o que Amy está fazendo antes que a polícia possa prendê-lo. Nas tramas de Robert Langdon (personagem de Dan Brown), ele sempre precisa resolver uma "caça ao tesouro" e evitar que milhares de pessoas se machuquem. 11. Cena: protagonista pode virar a próxima vítima Uma cena que você pode (ou não) incluir em seu thriller é uma em que a protagonista aprende ou faz algo que a coloca no caminho direto da antagonista. Em outras palavras, faz algo que a tornaria a vítima final da antagonista, dependendo de suas ações para sobreviver ou combatê-la. Essa cena geralmente acontece no final do segundo ato, empurrando a protagonista para o terceiro ato e para o inevitável clímax da história. Estudos de caso: Em O Silêncio dos Inocentes, Clarice percebe que Buffalo Bill conheceu sua primeira vítima pessoalmente. Ela decide ir à cidade natal de Buffalo Bill para investigar. Em Louca Obsessão, Paul percebe que Annie é uma serial killer. Ele entende agora que não vai sair vivo a menos que ele mesmo mate Annie. 12. Um falso final No final, quando tudo parece ter acabado, a antagonista se recupera para desafiar o protagonista uma última vez. Esse é geralmente um beat comum em filmes comerciais de outros gêneros, como terror e ação. Estudos de caso: Em O Silêncio dos Inocentes, Clarice liga para Jack Crawford e ele diz que já encontraram Buffalo Bill e estão prestes a pegá-lo. Mas este é um final falso porque, quando o FBI derruba a porta, percebem que a casa está vazia. Em Louca Obsessão, parece que Paul matou Annie, mas ela volta à vida para desafiá-lo uma última vez. Em Garota Exemplar, Nick planeja contar a verdade sobre Amy, mas ela diz que está grávida e ele decide ficar com ela. 13. Cena: a justiça prevalece (ou falha) Outra cena-chave que você pode incluir em um thriller é uma em que o público entende se a justiça prevaleceu ou não. Então, é uma cena final onde veremos se a antagonista escapou ou não de seu crime. Essa resolução depende do tema, universo e mensagem geral do filme. Estudos de caso: Em Silêncio dos Inocentes, a justiça prevalece. Buffalo Bill é morto e Catherine Martin está segura. Em Louca Obsessão, a justiça prevalece (mais ou menos). Annie Wilkes está morta, mas Paul ainda é assombrado por sua memória e pelo tempo que passaram juntos. Em Garota Exemplar, a justiça falha. Amy não enfrenta nenhuma consequência por seus crimes porque ninguém sabe a verdade sobre eles, exceto Nick. Você até pode pensar que incluir algumas ou todas essas convenções em seu thriller parece óbvio, mas não é. O que acontece quando empregamos convenções de uma maneira original é que o público sai satisfeito da sessão, pois já esperava todas as etapas e peripécias que mencionamos. Além disso, ajuda a estabelecer uma estrutura primária para que você crie em cima. Boa escrita!
- Conhecendo as convenções do terror
Está criando narrativas aterrorizantes? Saiba como as expectativas convencionais de filmes de terror podem ajudar na estrutura e escrita! Após anos de cinema, como continuar surpreendendo o público na hora de escrever um filme de terror? Essa é uma pergunta que assola muitos roteiristas. Porém, o que muitas vezes falta é a noção das convenções do gênero e suas variantes, já que essas podem ajudar bastante na hora de construir a narrativa. Aqui, é preciso cuidado: muitas pessoas confundem convenções com clichês, que não são a mesma coisa. Convenções são estruturas, plot points ou elementos narrativos que já são conhecidos, assimilados e esperados pelo público. A tensão, o susto ou repulsa, por exemplo, são sensações convencionais que um filme de terror causaria. O mesmo vale para certos arquétipos de personagem, ritmo, temas, representações e ambientes. Já um clichê é uma convenção mal construída, repetida à exaustão ou até mesmo nociva para a sociedade (estereótipos). Um clichê é geralmente a primeira ideia do roteirista ou algo que já está no inconsciente coletivo há muito tempo, nunca sendo atualizado ou melhor desenvolvido. Assim fica fácil entender que convenções caracterizam um gênero. Espectadores já esperam enxergá-las num filme com gêneros bem demarcados e podem se frustrar ou se confundir sem elas. “Convenções de gênero são a rima do roteirista. Elas não atrapalham a criatividade, elas a inspiram. O desafio é manter as convenções e evitar os clichês.” - Robert McKee. Vamos refletir e conhecer um pouco das características convencionais de filmes de terror? Utilizando a estrutura do terror a seu favor Primeiramente, qualquer roteiro precisa partir de certos alicerces. Os principais são: tema, protagonista com desejos e necessidades, conflito e conhecimento de estrutura narrativa. Com o terror (ou horror) isso não é diferente. É preciso pensar o gênero como uma abordagem da sua história, ou um modo de contá-la, desconstruindo alguns mitos sobre ele. Qual é seu tipo de terror? Para além dos vários subgêneros, é importante definir bem qual a abordagem aterrorizante que sua história irá apresentar. É um suspense psicológico? É um body horror explícito? É uma tragédia monstruosa? Essa clareza também é importante na hora de pitchs ou de vender seu projeto. "Numa cena dramática de ódio e crueldade, vemos o ódio e a crueldade - que sabemos serem coisas reais e permanentes na vida humana - pela ótica da imaginação. O que a imaginação inculca é o horror: não o horror paralisante e nauseante dum arrancar de olhos, mas um horror exuberante, alimentado pela energia do repúdio. O que temos aí é uma poderosa representação daquilo que não queremos para a nossa vida." - Northrop Frye, "A Imaginação Educada" Será que, ao invés do monstro degolar o sujeito, não seria mais inusitado persegui-lo pela floresta e nunca aparecer? Ou então, ao invés de termos o monólogo expositivo do vilão, vermos uma única ação simbólica? A concentração e representação dramática de temas e falhas que todos nós podemos reconhecer em nós mesmos já é bem potente por si só. Agora, se você decidir apostar num gore bem sangrento, vá fundo! Mas seja responsável com seu discurso e com respiros dramáticos, para que o público não fique horrorizado 100% do tempo. Terror não é só grito e correria Com certeza você já sabia disso, mas é sempre bom lembrar. Em "The Anatomy of Story", o autor John Truby afirma que: "Durante o filme, você quer desenvolvimento de plot (enredo), não repetição. Em outras palavras, mudar fundamentalmente as ações da protagonista. Não fique insistindo no mesmo plot beat (ação ou evento) [...]. Para o enredo se desenvolver, você precisa fazer sua protagonista reagir a novas informações sobre o oponente [...] e ajustar sua estratégia e curso de ação de acordo com elas." - John Truby Sendo assim, não tenha medo das reviravoltas e inversões de valores! Quando feitas de maneira coerente com a construção da protagonista e o universo narrativo, elas são suas aliadas na hora de inovar no gênero, contar sua história e entreter o público. Como comentamos anteriormente, lembre-se também de que os espectadores não costumam curtir ficar uma hora e meia tensos, preocupados ou enojados. Tenha respiros na tensão da sua história, investindo em momentos de normalidade, comicidade ou explorando o backstory das personagens, por exemplo. Protagonismo ativo Sua personagem protagonista segue precisando ter falhas, virtudes, necessidades dramáticas que vão movimentar a narrativa e um arco de transformação (mesmo que esse seja pequeno, interno ou simbólico). Inclusive, o gênero do terror é um dos que mais testa as falhas e forças das personagens, muitas vezes em situações de vida ou morte. Aqui, é importante saber que um dos principais erros cometidos na hora de construir uma personagem de terror é construí-la muito reativa e pouco ativa. Ou seja, tudo de ruim e horrível acontece com ela, mas não é ela que causa nada. Uma narrativa bem amarrada leva em consideração a falha principal da personagem e a força necessária para superar essa falha - ou, no caso de uma tragédia, as consequências dessa falha. Sua protagonista é egoísta? É intolerante? Ou, no caso de uma mistura de terror e comédia, é ironicamente azarada? Outra reflexão importante para quem escreve terror é saber que sentir medo é algo natural e já é esperado de uma personagem de filmes desse gênero. Mas quais outras reações existem ali? Surpresa? Repulsa? Atração? Incompreensão? Para criar personagens mais completas, vale refletir seu caráter e suas escolhas, para que estas criem o enredo e não somente surjam a favor dele. Incidente incitante x Incidente-chave Muitos conhecem o termo estrutural "Incidente Incitante'', responsável por incitar o fato principal da narrativa. Pode aparecer no final do 1º Ato, logo antes disso ou mesmo antes da história começar. É um fato (externo ou baseado em escolhas da personagem) que desestabiliza seu equilíbrio e move a história para seu rumo "mais interessante". Pode ser uma sequência inteira, uma cena, uma ação mínima ou até uma resposta de alguém. Contudo, é fundamental entender também o que é o Incidente-Chave, um elemento comumente confundido ou esquecido. Basicamente, é a escolha da protagonista que define o Ponto Sem Retorno, onde não há mais volta e o terror vai se desenvolver queira ela ou não. De acordo com o escritor Henry James, “incidente é a luz que ilumina e revela o personagem” - uma definição que funciona bem aqui. Em "The Nutshell Technique", a autora Jill Chamberlain chama esses pontos narrativos de Incidente Incitante, 'Ponto Sem Retorno' e 'Catch' - a personagem consegue seu primeiro desejo mas, junto dele, vem um lado ruim, que no caso do terror pode ser uma maldição, um convite ao serial killer ou outra coisa. Daí, estamos junto da personagem na sua luta de sobrevivência. Algumas convenções dos subgêneros do terror Filmes de terror, thriller e mistério dependem muito do ritmo em que você vai revelar as partes da história. Por isso, a utilização de atmosfera de suspense e jumpscares é bem comum. Suspense e jumpscare O suspense aparece no terror para aumentar a tensão da trama - e do público. Aqui, você precisa jogar com elementos simbólicos e revelações desencontradas, brincando com a antecipação. Pense na famosa "bomba embaixo da mesa", de Hitchcock. É mais tenso sabermos que ela está ali e as personagens não ou só descobrirmos sobre a bomba quando ela explodir? Já os jumpscares são momentos onde o filme visa assustar ou horrorizar de fato o espectador, podendo envolver a personagem junto nisso ou não. É aí que entra o perigo dos clichês, que já cansaram os espectadores com monstros embaixo da cama, atrás da porta e vários outros. É interessante notar, porém, que nem todos os filmes de terror precisam apresentar jumpscares. Um bom jumpscare é aquele que trabalha bem com o ritmo da cena, geralmente alongando-a para assustar com uma revelação do "monstro" ou com um som aterrorizante. Em nosso Grupo Fechado para Apoiadores do WR51, elaboramos mais dicas sobre isso. Conheça nosso projeto no Catarse e considere apoiar! Alívio cômico Outra convenção bem aceita pelo público é o alívio cômico. Muitas vezes, recai sobre uma personagem ou situação mais leve, que ajuda a balancear os momentos tensos. Podem ser utilizados diálogos irônicos ou mesmo uma ação mais "normal", para criar empatia e relaxar quem está assistindo. Uma dose de ironia ajuda o público a se conectar com as personagens e querer acompanhar sua trajetória (e, dependendo, luta pela sobrevivência). Mesmo que nem todos os filmes possuam esse elemento, vale a pena conhecê-lo. Agora, conheça algumas das convenções dos subgêneros do terror e inspire-se! 1. Narrativas de assombração ou contato sobrenatural Nesse subgênero, o terror é mais psicológico ou interno e toma forma de uma ameaça sobrenatural. Não é regra, mas geralmente se inicia quando a protagonista está em uma nova fase da vida, como: nova casa, novo relacionamento, novo emprego. Muitas vezes, as narrativas fazem alusão ao estado psicológico das personagens e transformam essas dificuldades em entidades. Principais convenções : Traumas e/ou tragédias do passado; Mortes ou traumas não superados; Culpa, segredos polêmicos; Ambientes já assombrados; Maldições. Exemplos de filmes: "Os Outros", "O Sexto Sentido", "Morto Não Fala", "Oculus" e "O Grito". 2. Slashers Aqui, o(a) assassino(a) é a última bolachinha do pacote. Não precisa ser a personagem protagonista, mas é necessário que seja minimamente desenvolvido e tenha uma característica marcante. Muitos utilizam máscaras. Geralmente, trata da dinâmica vida ou morte, com perseguições, fugas ou caça ao assassino. As personagens geralmente estão em grupo e possuem algumas características bem clichês - muitas vezes, com inspirações da cultura norte-americana, algo já utilizado à exaustão. Muitos filmes apresentam gore ou violência explícita. É preciso muito cuidado com esse subgênero, pois possui vários clichês que não são mais interessantes hoje em dia. Principais convenções: Assassinos em série com alguma característica única, ou então mascarados; Presença da história de vida desse assassino; Vingança; Personagens adolescentes ou jovens; Final Girl (personagem sobrevivente geralmente feminina). Exemplos de filmes: "Pânico", "Halloween: A Noite do Terror", "Sexta-Feira 13", "Alta Tensão" e "Final Girls". 3. Histórias de Zumbi Essas narrativas lidam bastante com discussões sociais, políticas e de relacionamentos entre as pessoas. Geralmente partem de um desastre, podendo tomar uma abordagem pós-apocalíptica e distópica. Não é regra, mas muitas vezes o vírus, fungo ou mutação causadora do zumbi possui uma história de origem. Aqui, os clichês têm a ver com os arquétipos batidos de personagens e sua relação com os infectados. Principais convenções: Colapso da sociedade; Histórico de infecção por vírus ou erro humano; Sobrevivência através de fuga ou isolamento; Humanidade como ameaça; Brigas de poder. Exemplos de filmes: "Noite dos Mortos-Vivos", "Mangue Negro", "REC" e "Resident Evil". 4. Narrativas de monstro Com origem mitológica, as histórias com monstros geralmente lidam com temas bem grandiosos, como sobrevivência, ganância humana, etc. Os monstros são representações distorcidas do próprio ser humano e tem bastante influência do romantismo. Por isso, geralmente essas histórias possuem final trágico e uma mudança de valores, onde começamos temendo o monstro e terminamos por entendê-lo, lamentando sua morte (quando ocorre). Aqui também entram filmes de criaturas, onde existem várias da mesma espécie. Mas elas se diferem por não inspirarem empatia e serem realmente forças opositoras. Principais convenções: Superação e sobrevivência; Romance trágico; Revelação gradual do monstro; Inconsequência ou erro humano; Entidades mitológicas, fantásticas, folclóricas ou desfiguradas. Exemplos de filmes: "As Boas Maneiras", "Frankenstein", "Babadook", "Cloverfield" e "O Nevoeiro". 5. Home invasion Entre os principais subgêneros do terror hoje em dia, existe uma série de filmes que se utilizam das invasões domiciliares como pano de fundo para assustar o público. Tais filmes também podem pertencer aos gêneros thriller, suspense ou mesmo policial, mas no terror também fazem muito sucesso. Inclusive, vários entram na categoria slasher, mas não sempre. Geralmente, tais narrativas refletem o medo de termos nosso espaço privado invadido, trazendo a sensação de que o mundo exterior é mais perigoso e imprevisível do que imaginamos. Aqui, rangidos e solavancos assustam as personagens e revelam que existem estranhos à espreita, que geralmente extrapolam os limites e partem para a violência. Só cuide para não empregá-la gratuitamente. Principais convenções: Sobrevivência e núcleo familiar; Violência aparentemente gratuita ou impessoal; Personagem final que sobrevive; Grupos, seitas ou assassino(a) sanguinário(a); Ciúmes, ganância ou sede de vingança; Revelação gradual da ameaça, através do som e vultos. Exemplos de filmes: "Emelie", "A Invasora" e "Os Estranhos". Claro que existem milhares de outros subgêneros e diversas convenções que não mencionamos aqui, mas essas são algumas das principais que ainda aparecem nos filmes de hoje em dia. E você, conhece mais alguma? Já tem um processo estabelecido para construir narrativas aterrorizantes? Comente aqui ou compartilhe conosco pelo Facebook! #roteiro #dicasderoteiro #terror #horror #estrutura #convenções #narrativa
- Entenda a diferença entre convenções de gênero e tropos narrativos
O que são as famosas "convenções"? Qual a diferença entre tropes e clichês? Entenda o básico e reflita sobre os elementos da sua narrativa! Você já assistiu um filme que era para ser de terror… mas não tinha monstro ou assassino, perseguições, tensão ou mesmo sustos? Provavelmente, aquele não era um filme de terror convencional. E não existe problema algum nisso. Porém, quem escolhe o caminho de escrever narrativas comerciais de gênero sabe da importância de reconhecer as convenções de cada estilo, bem como tropos (ou tropes) de personagens ou jornadas. Mas todas as convenções contam como tropos? Ou é o contrário? Como não se confundir? Para ajudar a esclarecer a diferença entre convenções de gênero e tropos, traduzimos, adaptamos e complementamos o texto da editora literária Savannah Gilbo, que você pode ler em inglês aqui. Savannah escreve sobre livros, mas suas dicas são sempre válidas para histórias audiovisuais. Confira! O que são convenções de gênero? Convenções de gênero são elementos da história, como arquétipos de personagens e eventos-chave, que são comuns de serem encontrados em um gênero específico. Essas convenções não apenas definem cada gênero específico, mas também definem as expectativas do público de uma história nesse gênero. Então, por exemplo, se alguém assistir a um romance, essa pessoa terá expectativas diferentes para essa história do que teria se visse um terror, certo? Isso porque cada gênero tem um conjunto específico de convenções e cenas obrigatórias que o fazem funcionar. Leia nossa matéria sobre algumas das principais convenções temáticas do terror clássico Essas convenções e "cenas obrigatórias" são objetivas, o que significa que elas precisam existir em uma história para dar forma a ela e fazê-la “funcionar” de acordo com as diretrizes do gênero. Aqui estão alguns exemplos de convenções de gênero: Em uma história de mistério, você esperaria que houvesse pistas reais e pistas falsas para o detetive seguir. Essas pistas reais e falsas são uma convenção do gênero mistério. Em um romance, você esperaria que houvesse um encontro, um primeiro beijo e talvez um interesse amoroso rival. Estes são parte da convenção do gênero romance. Em uma história de ação ou aventura, você esperaria que houvesse uma figura mentora que ajudasse a protagonista a aprender, crescer e mudar. Esta é uma convenção do gênero de ação e também aventura. Em um filme de terror sobrenatural, você esperaria ver ou ouvir fantasmas, descobrir segredos do passado. Estas são convenções do terror sobrenatural. Agora, em cada um desses exemplos, observe que não são elementos muito específicos. O mentor do filme de ação é apenas um papel actancial concreto, que você precisa preencher da sua forma. Esse papel tem um propósito muito específico na história geral. Teorias que se utilizam desses tipos de arquétipos foram criadas por diverses autores, como John Truby, Robert McKee e Linda Aronson. Mas como isso se conecta a tropos de personagem? O que são tropos de gênero? Tropos (ou tropes, em inglês) são uma maneira específica de entregar ou apresentar convenções de gênero ou cenas obrigatórias em sua narrativa. São estabelecidas a partir da percepção geral de uma repetição narrativa ao longo dos anos, aparecendo em personagens ou no próprio enredo. Então, continuando com o exemplo de uma figura mentora em uma história de ação, vamos pensar em algumas maneiras de apresentar essa figura na narrativa. Você pode ter um velho com uma longa barba branca, ou um eremita anti-social que vive nas montanhas e vive da terra. Você pode ter uma mentora excêntrica de meia-idade que se veste muito bem, ou você pode ter uma criatura mítica atuando como mentora. Essas formas específicas de apresentar convenções de gênero em sua história são o que considero tropos – são interpretações subjetivas de uma convenção, amplamente utilizadas nas narrativas por aí. Se o seu gênero exige uma figura mentora, isso não significa que precisa ser um Gandalf ou um Dumbledore. Você pode literalmente construir quem você quiser, desde que satisfaça a convenção. Na verdade, é só assim que você torna sua história única – satisfazendo as convenções do seu gênero de uma maneira nova ou inesperada. Mas o que aconteceria se você deixasse a convenção do papel de mentor fora de sua história de ação? O público provavelmente sentiria falta de alguém para preencher esse papel. É possível, até, que a própria pessoa espectadora tentasse preencher esse vazio, confundindo-se com outras personagens e suas funções. Não apenas isso, mas a função que o mentor desempenha em sua história não seria cumprida. Então, sem uma figura aliada e sábia, que ajuda seu protagonista a aprender, crescer e mudar, como mostrar esse aprendizado de maneira crível? Quem está lá para apontar o que é certo e errado para a sua protagonista? Ou para mostrar-lhes os caminhos do mundo? Ou prestar assistência? Isso ilustra algo muito importante na questão de convenções de gênero x tropos: as convenções geralmente têm uma razão objetiva para que existam em uma história, enquanto os tropos geralmente não. Lembre-se: arquétipos se referem mais ao papel da personagem, enquanto tropo é relativo à personalidade dela ou seu papel como reconhecido na cultura pop. Arquétipo é algo anterior ao tropo e possui características mais "neutras". O tropo já se baseia em pessoas ou situações mais "reconhecíveis" e repetidas. Portanto, as convenções de gênero precisam ser atendidas para que sua história funcione e satisfaça as expectativas dos leitores. Mas a maneira como você entrega essas convenções, ou os tropos que você escolhe usar, depende totalmente de sua imaginação. Como evitar clichês e estereótipos na construção de tropos É importante perceber que algumas pessoas amam certos tropos, enquanto outras acham alguns cansativos e clichês. E, hoje em dia, fica fácil perceber como personagens e jornadas estereotipadas são nocivas. Se um certo tropo é usado muitas vezes em um gênero específico, pode começar a parecer clichê, porque o público vê essa convenção da exata mesma maneira com muita frequência. O problema é quando esses tropos são utilizados como desculpa para personagens mal pesquisadas, simplistas e socialmente nocivas! Saiba mais sobre essa questão nesse vídeo da Carissa Vieira: Aqui estão mais alguns exemplos de convenções sendo apresentadas como tropos: A pessoa "escolhida" que precisa derrotar o lorde das trevas. Esta é apenas uma forma de apresentar a protagonista e a antagonista de uma história. Ambas são obrigadas a pertencer a uma história que funcione, mas a maneira como você as apresenta não é necessariamente sempre nessa configuração/representação. Depende totalmente de você e da sua imaginação. O triângulo amoroso em um romance. Um triângulo amoroso é uma convenção do gênero romance. Tropos comuns que são usados para apresentar essa convenção são um pretendente rico vs. um pretendente pobre, dois irmãos interessados na mesma pessoa, etc. Agora, dependendo do tipo de história de amor que você está escrevendo, pode haver uma boa razão para incluir um desses tropos como uma representação do encontro com a convenção do gênero triângulo amoroso. Então, por exemplo, se sua história tem algo a dizer sobre o tema "ser rico x ser pobre", pode fazer sentido ter um pretendente rico vs. um pretendente pobre em seu triângulo amoroso. Esse tropo ajudaria você a cumprir a convenção do gênero e provavelmente o ajudaria a comunicar o tema da sua história. A figura da Final Girl que sofre muito, mas sobrevive no final. Essa convenção do terror faz sentido e ainda é muito utilizada, mas muitas vezes pode ser bem previsível. Se o filme inicia com foco exclusivo em uma pessoa, já imaginamos que ela irá sobreviver. A questão é entregar os desafios e superações de maneiras novas ou inesperadas, sempre pensando nas especificidades daquela personagem. Já prestou atenção na trajetória da Regan, de Um Lugar Silencioso (2018)? Agora, conheça alguns erros comuns quando se trata de tropos e convenções - e como evitá-los. 3 erros comuns no uso de convenções e tropos de gênero 1. Ignorar convenções de gênero por achar "previsíveis" ou "clichês" Não quer utilizar uma convenção na sua história? Sem problemas! Mas faça isso conscientemente, e não por achar que vai estar caindo no "clichê". Essa abordagem é um erro porque as convenções de gênero nos ajuda a escrever uma história funcional dentro de um gênero – elas nos ajudam a satisfazer as expectativas que o público tem. O que geralmente acontece nesse cenário é que roteiristas optam por ignorar as convenções de gênero e acabam com uma história que não funciona ou não se encaixa em nenhum gênero. E, quando se fala em cinema comercial, isso pode ser um problema. Por exemplo, romances tendem a ter uma má reputação porque as pessoas pensam que são previsíveis, em grande parte devido ao fato de que, para escrever um romance, você precisa de um "final feliz". Porque, quando você pensa em um romance, pode pensar em elementos como um casal, beijos ou intimidade, algo que os separa, um grande gesto amoroso e um final feliz para sempre, certo? Essas coisas são esperadas por espectadores ou fãs do gênero. As pessoas lêem e assistem histórias de romance para se sentirem insatisfeitas ou até enganadas se não enxergarem essas coisas lá. Agora, é totalmente possível subverter algumas convenções (como o final feliz, por exemplo) e isso é até bem-vindo hoje em dia. Mas lembre-se de que as cenas e convenções obrigatórias de um gênero estão lá por um motivo positivo e comercial. Se você escolher mudar alguma convenção, seu filme poderá não ser tão comercial quanto você pretende. 2. Incluir um monte de tropos em sua história que não servem a nenhuma função Se você não sabe por que está colocando algo em sua história, isso provavelmente não deveria estar lá. O que geralmente acontece nesse cenário é que roteiristas procuram uma "lista de tropos” de gênero e depois os colocam em sua história, esperando que isso tenha o efeito desejado no público. Mas a verdade é que essa estratégia geralmente não funciona, porque os tropos, ao contrário das convenções, não têm necessariamente uma razão específica pela qual deveriam estar em uma história. Por exemplo, não há razão para você incluir um velho mentor grisalho com uma longa barba branca em sua história de ação. No entanto, é bom respeitar a convenção que diz que seu protagonista precisa de uma figura mentora. Entendeu a diferença? Um mentor serve a um propósito, mas pode ser representado por qualquer tipo de pessoa - ou mesmo grupo de pessoas bem diferentes entre si. Às vezes, tropos acabam sendo situações ou coisas completamente arbitrárias que foram feitas muitas vezes ou que o público de um determinado gênero gosta de ver. Uma "Final Girl" tem seus propósitos de sobrevivência e superação bem claros. Já o tropo da "Mulher Raivosa Sem Objetivos" acaba sendo nocivo e narrativamente inútil. Reflita sobre algumas questões: Qual a relação dessa personagem com a jornada da personagem protagonista? Ela ajuda ou atrapalha? Ou não faz absolutamente nada? Depois de ser apresentada, essa personagem-tropo vai alterar significativamente o enredo? Esse tropo poderia ser facilmente substituído por outra coisa mais simples, como uma informação ou ação do "destino"? Esse tropo possui seu arco narrativo na história, mesmo que pequeno? Certifique-se de entender por que algo está sendo incluído em sua história, para evitar sobras e inconsistências. 3. Seguir todas as regras de todos os livros Esse é um erro que trazemos atenção desde sempre aqui no Writer's Room 51. Geralmente, seguir tudo à risca leva à paralisia da narrativa, ou então a uma confusão terrível. Nesse cenário, um roteiristas foi lá e pesquisou listas de tropos, convenções de gênero ou arquétipos de personagens. Em seguida, compilou todas essas listas em uma lista gigante com coisas muito específicas que precisam ser incluídas em sua história. De repente, a narrativa parece um monte de cenas sem pé nem cabeça. Isso é meio parecido com o segundo erro sobre o qual acabamos de falar, mas é um pouco mais extremo - roteiristas que caem nessa armadilha veem convenções e tropos como ferramentas muito mais restritivas do que precisam ser. São muitas “coisas” para considerar que não precisam necessariamente ser consideradas. Então, por exemplo, se você se concentrar mais na jornada emocional da protagonista, ou numa estrutura estilo Jornada do Herói - até mesmo nas convenções de gênero e suas "cenas obrigatórias" -, você provavelmente terá mais facilidade em visualizar e construir sua narrativa. Se isso soa como algo que você está fazendo, saiba que não é preciso seguir todas as regras de todos os livros. Escolha um método ou estrutura que funcione para você e faça a partir disso a sua sinopse ou argumento. Caso contrário, dez anos depois, você ainda estará ponderando sobre esses métodos e tropos diferentes... sem ter construído nada. Escreva a história que você quer assistir As convenções de gênero existem para tornar as coisas mais fáceis para roteiristas, já que fornecem uma estrutura básica para escrever sua história - quase como um beat sheet mais específico. Essas convenções e cenas obrigatórias sugerem começos, meios e finais “naturais” – bem como pontos de conflito, cenários e personagens que compõem uma história de gênero. Se você realmente quer dominar seu gênero favorito, primeiro precisa saber o que se espera de um filme ou série assim, para depois entregar convenções de uma maneira nova e interessante. Mas isso tudo existe sempre em função da arte e da história que você quer contar. Seu protagonista não vai ter uma figura mentora? Seu romance quer subverter o "felizes para sempre"? Vá em frente! Toda a narrativa é válida se for bem pesquisada e construída. Aproveite para apoiar nosso Catarse e entrar no nosso Grupo Fechado, onde você tem acesso a materiais exclusivos, dicas, networking e discussões narrativas! #convenções #gênero #tropos #tropes #narrativa #dicasdeescrita
- Séries documentais e reality shows, com Rico Perez
Diretor-geral e artístico de conteúdos de não ficção revela as particularidades dos roteiros deste gênero e fala da importância de um diálogo com a dramaturgia para fisgar o público Entrevista e texto por Igor Carvalho* O gênero não ficção está em alta no audiovisual brasileiro. É só olhar para a quantidade de lançamentos disponibilizados nos últimos 12 meses que identificamos essa tendência. No período, os sete principais streamings disponíveis no Brasil lançaram 35 títulos, entre séries documentais e realities shows. Já as obras de ficção somam 16. Com a urgência de aumentar a oferta de conteúdo em suas plataformas, estes players têm apostado no formato, cujos custos de produção são mais modestos quando comparados aos dos produtos ficcionais. Para desvendar as particularidades dos roteiros de não ficção, as preferências da audiência local e para falar sobre esse aquecimento do mercado, conversamos com Rico Perez, que há mais de 20 anos atua como showrunner, diretor-geral e criativo de obras de não ficção. Com dezenas de produções no currículo, ele é um especialista no gênero. Quem é Rico Perez? Formado em jornalismo, Perez estudou criação cinematográfica na New York Film Academy. Criou e dirigiu produções dos mais diversificados formatos. Seu lançamento mais recente é a competição de talentos "Queen Stars Brasil" (Endemol Shine Brasil), um original HBO Max. Perez também está à frente, como diretor-geral, de projetos para a Netflix. É o caso da série documental "É o Amor: Família Camargo" (Ventre Studio) e o reality show "Brincando com Fogo Brasil" (Fremantle/Mixer Films). A versão brasileira de "To Hot to Handle" é uma das várias adaptações que Perez realizou. A lista inclui "SuperNanny" (SBT), "Escola para Maridos" (Endemol Shine Group/Fox Life) e "A Casa" (Fremantle Brasil/Rede Record), entre outros programas para a TV por assinatura e aberta. Foi diretor-geral no SBT por dez anos e passou, também, pelas produtoras Fremantle Brasil, como diretor criativo, Moonshot Pictures e Endemol Shine Brasil, nesta dirigiu "Me Poupe! - Dívidas Nunca Mais". Reality show “made in Brazil” O momento que a não ficção atravessa enche o profissional de entusiasmo. "Percebemos um movimento muito forte dos streamings para se estabelecerem com força no Brasil", diz Perez. "Claramente, eles querem fazer formato original, não só traduzir", acrescenta. Para o diretor, as adaptações não devem ser a tônica das produções feitas no país e isso pode favorecer, inclusive, a exportação de conteúdos e formatos brasileiros. "Brincando com Fogo Brasil", por exemplo, ficou no ranking dos dez programas mais assistidos em 41 países. Apesar do sucesso, Perez esclarece que não é tão interessante para uma plataforma como a Netflix lançar, em um intervalo curto de tempo, versões de uma mesma série para os diferentes mercados onde atua. "Não faz muito sentido fazer tantas temporadas assim, pois o ineditismo é muito curto. Se alguém assiste pelo formato em si, vê em inglês mesmo. A gente já se acostumou a isso. Então, vai ser natural que o streaming comece a investir [em originais locais]. Num primeiro momento, eles vão nichar mais. No nicho, aparentemente, há uma garantia maior de público", explica. Para fisgar essas oportunidades, os produtores de conteúdo devem buscar um novo olhar para cada universo que pretende retratar, pois a não ficção, muitas vezes, explora temáticas semelhantes. Esta estratégia, de voltar-se para o nicho com algum diferencial, pode ser observada, por exemplo, no lançamento de "Queen Stars Brasil", apresentado por Pabllo Vittar e Luísa Sonza. "Não acho que o programa é uma novidade em termos de formato. A novidade é mostrar que há uma arte negligenciada, num país tão preconceituoso como o nosso. É um talent show com drag queens, ou seja, pessoas que escolhem cantar por meio de uma persona – sem fazer disso uma chacota, como já foi feito, lá atrás". "E é um espaço para mostrar a comunidade LGBTQIA+ na posição de não sofrimento. A palavra ali é lacração", detalha Perez. Fazemos muito bem televisão, tanto não ficção como ficção. Algumas das melhores versões de realities foram feitas aqui. No caso de SuperNanny, eles [os donos do formato] consideraram que, depois da [original] inglesa, a nossa foi a melhor adaptação. - Rico Perez O que o mercado quer? Conteúdo true crime é a "nova gastronomia". O diretor aponta que as séries documentais de crime são a bola da vez. "Assim como aconteceu com a gastronomia, agora passamos pela fase dos true crimes, então, vamos ver mais coisas de crime por um tempo". Perez acredita também que formatos gastronômicos estão ficando desgastados, depois do boom da última década, mas ainda encontram fôlego. "Existe um público consumidor e um patrocinador, então eles não param tão rápido. Mas, acho que estão em decadência", especula. Para esse "suspiro final", os players tentam "inovar" no formato, seja ao especializar-se em sobremesa, como é o caso do "Que Seja Doce", uma das maiores audiências do GNT, ou ao mesclar humor com competição gastronômica, a exemplo de "Rolling Kitchen Brasil" (GNT). O diretor observa ainda que as novas produções devem evoluir à luz das mudanças da sociedade como um todo. Ele acredita que projetos como o "Esquadrão da Moda", que dirigiu em 2013 no SBT, tenham ficado datados. "Acho mais complexo julgar um padrão no mundo de hoje do que era há nove anos. Agora, talvez seja mais delicado". "Dramaturgia" da vida real Outra aposta de Perez são os realities de pegação, voltados ao público jovem. "Eles ainda funcionam bem. E eu diria que os realities que conseguirem construir a melhor relação paralela com a dramaturgia são os que se darão melhor. Para mim, um ótimo exemplo é o "Casamento às Cegas" (Netflix). É como se fosse uma novela". "Você tem o elemento mais importante para segurar alguém até o final, que é a curiosidade de saber se os participantes vão se casar ou não. É a essência da dramaturgia, você vê até o fim pra saber como que acaba", explica. A preferência local por produtos com uma conclusão, aparece, inclusive, em pesquisas. O diretor cita que, no caso de obras true crime, elas apontam que o brasileiro gosta de saber se o criminoso foi preso e o crime solucionado. "No Brasil, quando você tem um final aberto, ele é muito criticado pelo público". Na opinião de Perez, todo reality show que propõe um desfecho que fisgue a atenção do público, baseado em conflitos a partir das relações humanas, tem boas chances de sobressair. "Este é o formato que vai melhor no Brasil. E a gente ainda não fez nada original que seja assim", observa. Existe um elemento de ficção que sempre precisa estar presente na não ficção. É do ser humano, ocidental pelo menos, criar uma história que é basicamente uma ficção – tem sempre um herói ou um mocinho, até na guerra da Ucrânia vemos isso acontecendo. A não ficção vai por este mesmo caminho. No "Brincando com Fogo", acaba tendo quem é o vilão, quem é a mocinha… São elementos dramatúrgicos. - Rico Perez Afinal, como é um roteiro de não ficção? A pergunta não é tão simples de responder, frente à diversidade de formatos de não ficção, assim, cada roteiro tem as suas especificidades. "Ele é construído na pré, no durante e, necessariamente, na pós[-produção]. É um roteiro muito mais aberto e, por isso, tão difícil. Você grava muito mais do que usa", resume Perez. O diretor detalha essas particularidades a partir de dois formatos bastante comuns, as docuseries e os realities de competição. No primeiro caso, quando uma pessoa ou situação são retratadas, a base do roteiro é a pesquisa. Em "É o Amor" (Netflix), o roteiro foi gerado a partir de uma imersão na trajetória de Zezé di Camargo e nas suas relações familiares, sobretudo, com a filha Wanessa Camargo (uma vez que a carreira dele já estava consolidada e não oferecia mais tantos eventos factuais, ainda mais durante a pandemia quando a série foi gravada). "A partir daí, vai da habilidade do diretor, da equipe e do diretor executivo, em seduzir este personagem para que ele entregue tudo que a pesquisa trouxe". No caso do Zezé [di Camargo], os roteiristas estavam envolvidos diretamente com a pesquisa, então, havia um desenho, um arco, do que esperar em cada episódio. Há um pré-desenho, mais ou menos de onde sai para onde vai. Mas, ele é muito mais mutável. - Rico Perez Criação de um universo Já no caso do roteiro de reality de competição e confinamento, Perez explica que a base é o universo e as mecânicas estabelecidas para aquele jogo. "É isso que vai fazer os personagens entregarem aquilo que você, de alguma maneira, objetiva". "Então é preciso provas e situações que gerem conteúdo e provoquem sentimentos, bons ou ruins". A pesquisa, neste caso, recai mais em achar participantes que se adaptem bem à dinâmica proposta. "Se a graça da mecânica é não poder transar para não perder dinheiro, você busca pessoas não muito controladas em relação à sexo. Então, você sabe como causar, ou seja, criar possibilidades para que elas fiquem com desejo". Quando um reality tem dinâmicas repetitivas, Perez alerta que o participante não é mais pego de surpresa, o que compromete a sua contribuição para o produto. Os roteiristas em realities shows estão envolvidos diretamente na criação das regras do jogo, que compõem um pré-roteiro. "Não há nada fechado. Você vai ter uma escaleta muito detalhada com todas as viradas, com o que você quer, os twists, tudo isso antes". Dependendo do tipo de edição que o produto vai ter, se cria, então, um roteiro de montagem. "Você tem uma equipe que trabalha muito unida. Quando o produtor de conteúdo faz as entrevistas, os depoimentos, ele tem que estar super instruído pela direção de conteúdo de como esse cara [participante] reagiu. Se ele ficou nervoso e falou um palavrão, a gente tem que entrevistar para saber por que ele falou aquele palavrão, e isso vai se complementar na edição", explica Perez. O roteirista de não ficção Existem algumas particularidades que podem diferenciar um roteirista que faz ficção de quem se dedica a documentário ou a reality show, por exemplo. Na opinião de Perez, o bom profissional de uma série documental tem que ser apaixonado por pesquisa. "É aquele curioso técnico, que vai destrinchar a biografia de uma pessoa e vai achar o ponto, o que a emociona, o que mudou a vida dela". Para os realities, o bom roteirista cria situações que saibam extrair o melhor de cada personagem. "É um misto de quem tem um certo conhecimento das pessoas, uma coisa mais psicológica, com muita criatividade para criar as mecânicas". "E precisa entender muito bem quem é o personagem, para o gatilho funcionar com ele", conclui. O roteirista de ficção pode até partir de um livro, de um argumento, mas ele tem que, naturalmente, fantasiar. É uma outra criatividade, mais lúdica. Na não ficção a criatividade é menos lúdica, mais prática mesmo. - Rico Perez *Igor Carvalho é jornalista em transição de carreira para a área de roteiro.
- Roteiro para YouTube: uma nova forma de entrar no mercado audiovisual
Qual o papel do roteirista de YouTube? Como entrar nesse ramo? Louise Smith Gonzaga, roteirista e criadora do @era.roteiristas, conta suas experiências por Louise Smith Gonzaga Nos últimos anos, o YouTube virou uma grande aliada para quem trabalha com audiovisual - inclusive, para quem trabalha na área de roteiro. Na plataforma, existem diversos canais, com conteúdos variados, e esses canais perceberam a necessidade de roteirizar antes de gravar. Canais como Humor Multishow, Parafernalha, Porta dos Fundos, Telecine, Tudo Gostoso, entre muitos outros, tem seus próprios roteiristas e, cada vez mais, canais têm investido na contratação desses profissionais. Inclusive, eu tive a oportunidade de trabalhar como roteirista freelancer de dois grandes canais do Youtube e vim compartilhar minha experiência com vocês. Quem é Louise Smith Gonzaga Sou formada em Cinema pela UFF e pós-graduada em Roteiro para Cinema e Televisão na FAAP. Fui pra Nova Iorque, onde estudei roteiro na NYFA, tive um projeto selecionado e produzido no Festival Adaptação 2012, uma série selecionada no Lab Projetos de Séries do Rota Festival 2019, meu projeto “Versão Brasileira” foi selecionado no Doctoring Sessions do Serie_lab 2021, sou co-criadora do @era.roteiristas e sou roteirista freelancer para audiovisual e web, com foco em comédia e drama. Em 2019, eu trabalhei como roteirista freelancer dos canais do YouTube Parafernalha e Telecine, tendo vídeos que, juntos, somam mais de 20 milhões de visualizações. Nessa experiência, eu entendi melhor o mercado audiovisual para internet, aprimorei minhas habilidades como roteirista e aprendi como funciona o formato de roteiro para YouTube, seja canal de Ficção ou Não-Ficção. Semelhanças com o roteiro de ficção Como eu trabalhei num canal de ficção/humor, muito da minha experiência como roteirista ajudou no processo. O formato é o formato padrão do mercado audiovisual, formato Master Scenes, e você escreve as esquetes como se fossem curtas-metragens de ficção. Diferentemente do que aprendemos nos cursos e faculdades de roteiro/cinema, no roteiro de ficção para YouTube, principalmente de humor, você pode investir nas rubricas – que são as descrições que vêm abaixo do cabeçalho ou na própria ação da cena - dando dicas aos atores de como se portar, que gesto ou cara fazer, ou até mesmo dizer o que o personagem está sentindo/pensando. Isso facilita a compreensão do ator (da atriz) no timing e entonação da piada e ele(a) vai trabalhar sua interpretação em cima dessas dicas. Mas, claro, essas rubricas precisam ser bem pensadas, pois a intenção é facilitar a compreensão do(a) Diretor(a) e Ator(atriz), mas sem atrapalhar o processo criativo. Então, busque equilibrar as inserções de rubricas. Como são decididas as pautas? Todo semana, o grupo criativo do Parafernalha fazia uma reunião pra levantar ideias e possíveis conteúdos para o canal; analisava vídeos lançados - entendendo o que deu certo e o que pode melhorar; recapitulava quem é o público-alvo do canal e o que ele quer consumir. Assim, cada roteirista ficava encarregada de algum(s) tema(s) específico(s) e escrevíamos esquetes em cima das pautas das reuniões. Claro, se o roteirista tivesse alguma outra ideia de roteiro, ele podia escrever e depois passar pra equipe pra decidirem se o roteiro se encaixava com o canal ou não. A relação com o público-alvo Como o canal que eu trabalhei - Parafernalha – é grande, com mais de 12 milhões de seguidores, foi importante fazer uma pesquisa do público-alvo do canal e entender o que eles buscam consumir. Eu já conhecia muitos vídeos do canal, mas pesquisei o conteúdo mais recente e entendi que o público fiel era majoritariamente jovem e adolescente, além do público raíz, que acompanha o canal desde sua criação. Então, foi necessário compreender como me comunicar com esse público, que tipo de humor eles estavam acostumados e trabalhar em cima disso. Ainda, por ser um público jovem e ativo nas redes sociais, a resposta do público para os conteúdos lançados era bem rápida. Isso foi algo novo pra mim, visto que no mercado de filmes e séries os projetos levam mais tempo para serem feitos e para se obter uma resposta do público, enquanto no YouTube é questão de semanas ou meses. Essa resposta vinha nos comentários dos vídeos e as pessoas diziam o que gostaram e o que não gostaram, às vezes, criticando a história, outras aclamando. O roteirista precisa ficar atento a isso para entender que conteúdo dá certo e que conteúdo não dá certo no canal. E, claro, não levar as críticas para o lado pessoal. Por exemplo, eu levei como pauta criar vídeos de humor sobre signos. Era um assunto popular e que estava viralizando e, como eu adoro signos, achei válido arriscar nessa ideia. Meu chefe achou a ideia legal e, juntos, pensamos em como trazer esse assunto para o canal. Já que nosso público era jovem, podendo ainda ser estudante, lembramos que a prova do Enem estava chegando e tivemos a ideia de fazer um vídeo sobre “Signos no Enem”. Na hora de lançar, pensamos em acompanhar as datas do Enem e dividimos o vídeo em Parte 1 – com os 6 primeiros signos, e Parte 2 – com os outros 6 signos. Na nossa ideia, o público ficaria curioso e aguardaria o próximo vídeo, mas, na prática, foi diferente. Algumas pessoas ficaram chateadas que não tinha o signo deles no vídeo e outras não queriam esperar pra ver tudo de uma vez. Então, quando a Parte 2 do vídeo foi lançada, o número de visualizações diminuiu bastante, pois já tinha perdido do timing da esquete. Signos no Enem – parte 1 (2,8 milhões de views): Signos no Enem – parte 2 (1,5 milhões de views): Como teve uma identificação grande com o tema, várias pessoas comentando e curtindo falar sobre seu signo, resolvi insistir no tema. Dessa vez, foi decidido que faríamos uma versão só, ou seja, lançamos de uma só vez uma esquete com os 12 signos. O vídeo ficou um pouco maior, mas teve muito mais engajamento e visualizações. Todo mundo tinha como comentar sobre o seu signo e se identificar de alguma forma, sem precisar esperar uma semana pra ver a outra parte. Signos na Escola (7,2 milhões de views): Esses exemplos são bons para entendermos que o grande desafio que o roteirista e a parte criativa enfrenta com criações para rede sociais é a resposta imediata do público. Quando a resposta é positiva, é festa total, mas quando não é tão positiva assim, é preciso lidar com a frustração e saber como contornar essa situação, evitando o mesmo assunto nos próximos vídeos ou mudar a forma de apresentação do conteúdo. No caso, depois que adaptamos o modelo, o vídeo deu muito certo. E quando o roteiro é de não-ficção? O formato de roteiro para não-ficção segue formatos conhecidos do mercado audiovisual que são: o formato de Escaleta e da Descupagem de filme. Na escaleta, o roteirista descreve as cenas e assuntos em tópicos, mas o conteúdo fica por conta do(a) apresentador(a). Nesse modelo, os roteiros ficam entre 2-5 páginas, mas a minutagem do vídeo vai variar de acordo com o que o(a) apresentador(a) falar. No vídeo abaixo, você pode ver como é feita a filmagem a partir de um roteiro no formato de Escaleta. Eu escrevi curiosidades sobre "Frozen 2 - O Reino do Gelo" em forma de tópicos e, antes do filme ser lançado, as apresentadoras aprofundaram e comentaram sobre as curiosidades do filme. FROZEN 2: TUDO O QUE SABEMOS: No roteiro em formato de decupagem, o roteiro é feito como a decupagem de filmagem. Logo, ele é feito em duas lacunas, onde de um lado o roteirista descreve a imagem ou cena que será visto e, do outro lado, o que será dito/abordado. Esse modelo é mais comum em canais que tem muitas mudanças de imagem, inserts, imagens de arquivo, em que é preciso saber o tempo certo para cada inserção e o que será dito na hora. Acredito que cada canal cria seu próprio formato de roteiro e, quando você vai trabalhar lá, talvez já tenha um modelo a seguir. No caso de você ser contratado para ajudar na criação de um novo canal, faça uma pesquisa do público-alvo, entenda como dialogar com ele e crie um formato padrão para os vídeos do canal. Isso será uma boa oportunidade de você, como roteirista, criar diferentes formatos e linguagens. Dicas para entrar no mercado de roteiro para YouTube Hoje em dia, é possível encontrar vagas de roteirista para canais do YouTube no LinkedIn e em outras redes de trabalho. Então, é importante você manter suas redes de trabalho atualizadas, dizendo seus estudos em roteiro e audiovisual, suas experiências na área e seus objetivos. Caso você consiga uma entrevista com o(a) recrutador(a), é legal você pesquisar sobre o canal, entender o conteúdo deles, criar um roteiro sample pra mostrar que você está interessado(a) na vaga e que entende o conteúdo deles. Também, é possível você mesmo, em parceria como amigos do audiovisual, criar seu próprio canal e investir como portfólio. Todo investimento é válido. Saiba mais: parceria Era.roteiristas & Roteiros e Narrativas Caso você queira saber ainda mais sobre a profissão de roteirista para YouTube, assista ao vídeo “ROTEIRO PARA YOUTUBE”, em que eu converso com a Gaby do Roteiros e Narrativas, contando toda minha experiência no Parafernalha e Telecine, dando dicas e explicando melhor o mercado: Leia também a entrevista com o Writer's Room 51 sobre o 3º LAB 51! Mais conteúdo Se você se interessa pelo universo de roteiro, seja para Youtube e mídias sociais, televisão, cinema e streaming, siga as redes sociais do @era.roteiristas, onde eu e roteiristas parceiros postamos dicas e compartilhamos aprendizados da profissão. #roteiro #youtube #internet #dicasderoteiro #postafiliado















