Trazemos uma análise estrutural adaptada do CINECLUBE51, um de nossos eventos exclusivos para apoiadores. Confira!
Que terror é um dos gêneros mais amados do cinema, nós sabemos. Mas como reinventar os beats sem sair do que é esperado e adorado pelo público?
Vários filmes atuais andam surpreendendo o público e "M3GAN" (2022) foi um dos títulos recentes que apostou em um limite entre o sério e o absurdo, dividindo opiniões e arrecadando uma legião de fãs.
Em seu lançamento "The Anatomy of Genres: How Story Forms Explain the Way the World Works" (2022), o autor John Truby decodifica e analisa o que ele entende como a essência dos gêneros narrativos, a fim de ajudar roteiristas e autores a construírem histórias universalmente impactantes. O autor inicia analisando o horror, tecendo uma teoria narrativa extremamente esclarecedora.
Nesse artigo, unimos o conhecimento de Truby aos destaques do CINECLUBE51, evento exclusivo para apoiadores do nosso Catarse. Analisamos filmes e episódios de séries em encontros com bastante troca de conhecimento. Se interessou? Saiba mais e continue lendo!
Terror: convenções e essência do gênero
Muitas pessoas confundem convenções com clichês, mas isso é um erro! Convenções são estruturas, plot points ou elementos narrativos que já são conhecidos, assimilados e esperados pelo público de algum gênero, como terror, comédia romântica ou policial. A tensão, o susto ou repulsa, por exemplo, são sensações convencionais que um filme de terror causaria.
Já um clichê é uma convenção mal construída, repetida à exaustão ou até mesmo nociva para a sociedade (estereótipos). Um clichê é algo que já está no inconsciente coletivo há muito tempo, nunca sendo atualizado ou melhor desenvolvido.
Portanto, convenções caracterizam um gênero. Espectadores já esperam enxergá-las num filme com gêneros bem demarcados, podendo se frustrar ou se confundir sem elas.
Em "The Anatomy of Genres", John Truby decodifica vários beats do horror, trazendo uma teoria histórica, psicológica e emocional para as possíveis interpretações dessas convenções.
Sobre o horror, Truby afirma que, dentre outras coisas, sua essência é basicamente um embate entre a luta pela sobrevivência VS encarar uma ameaça. A ameaça, em sua última instância, é o Outro, o desconhecido. Esse desconhecido pode ser algo que vive dentro de nós, sendo assim um dos horrores narrativos e existenciais mais assustadores. Truby afirma que é com o passado que a personagem vai lutar, confrontando uma falha de caráter como em outras estruturas narrativas.
Truby também menciona as diferenças metafóricas entre dois símbolos muito utilizados no terror: o porão e o sótão. O porão seria o elemento do passado enterrado e o sótão, o inconsciente, o elemento ou mente assombrada.
Mas como isso se enquadra em "M3GAN"? Separamos alguns destaques do nosso encontro exclusivo sobre a estrutura narrativa do filme. Confira e considere apoiar!
[Esse artigo vai discutir pontos narrativos do filme "M3GAN" (2022) em detalhes e pode trazer spoilers para quem não assistiu.]
As personagens de "M3GAN" carregam a narrativa
Não é segredo que nós do WR51 acreditamos muito na força das personagens.
Em "M3GAN", a protagonista não é Cady (Violet McGraw), embora ela seja apresentada primeiro. Trata-se de sua tia Gemma (Allison Williams). Sendo assim, o filme parte de um beat clássico do horror: os fantasmas do passado.
Trata-se de um trauma, um fantasma literal ou um segredo, associado muitas vezes à figura do porão, que assombra a protagonista, obrigando a personagem a aniquilar essa "profecia" do passado. Ao invés de ser um "fantasma" relativo à Gemma, o filme traz esse trauma em relação à Cady.
Cady: criança introspectiva, solitária, que substituiu por muito tempo a atenção dos pais por um brinquedo interativo. O pai prefere que ela seja sugada pela atenção virtual substituta do que o incomodar interagindo com eles. Cady perde os pais em um acidente e lida com uma "culpa de sobrevivente".
Qual a sua falha? Segundo o "The Nutshell Techinque", de Jill Chamberlain, personagens crianças não têm falhas. Elas passam por aprendizados, ou então são veículos para que a falha da protagonista seja testada.
Cady é uma personagem essencial pois possui uma ligação existencial com a protagonista: Gemma, que deu M3GAN (Amie Donald) de presente para Cady. A boneca é uma falsa solução, o prelúdio do problema. Ela é capaz de "tapar" uma ausência emocional, mas isso pode acabar sendo fatal. O terror, afinal, trabalha com extremos. Qual o extremo do amor e da proteção?
O filme parte de uma premissa que leva essa ideia à sua última instância: amar demais pode ser fatal.
Gemma: a tia rica, inteligente, autocentrada, ambiciosa, workaholic. Gemma indiretamente alimenta sua falha já no início, representada pelo brinquedo. Não pensa em construir família no momento (ou seja, a maior "vilã" de Hollywood depois de russos e comunistas).
"Ela é um pouco como o Dr. Frankenstein, não é? Ela criou esta situação. Ela é um gênio. Ela é muito boa no que faz. Essa é a parte de sua vida que é mais significativa para ela e na qual ela dá mais atenção. A parte dos relacionamentos foi negligenciada por muito tempo e, de repente, ela é mãe e simplesmente não sabe como lidar com isso." - Allison Williams (atriz de Gemma)
Novamente, segundo a Nutshell Technique, o desejo primário da protagonista a leva ao fim do primeiro ato, onde ele será conquistado. A solução do desejo vem imediatamente seguida de um “catch”, ou consequência - o clássico “Cuidado com o que você deseja”.
Estrutura e implicações narrativas do primeiro ato
No filme, o conflito inicial parte do chefe de Gemma, que precisa urgentemente que ela faça um novo modelo do Petz (brinquedo que se utiliza de uma simples inteligência artificial e agora é produzido pela metade do preço por concorrente). O chefe quer uma solução mais simples, para que consiga dominar o mercado.
Isso vai contra o desejo de Gemma, que envolve complexificar as coisas. Ela precisa provar ao chefe o valor do projeto que vem tirando seu tempo.
Desejo primário: dar o próximo passo no seu projeto de construir um brinquedo de Inteligência Artificial capaz de substituir uma pessoa, com quem a criança pode crescer, aprender e ter emoções genuínas.
Incidente incitante: depois do acidente que mata os pais de Cady, ela se muda para a casa da tia. Parece uma entrada no mundo especial, mas como o próprio título sugere, esta virada acontecerá apenas quando M3GAN se tornar parte da dinâmica familiar. A vinda de Cady para a casa de Gemma é o incidente que empurra a tia para as soluções que precisa para terminar o seu ambicioso projeto e justificar sua importância ao seu chefe.
Portanto, é graças a Cady que Gemma entende que M3GAN pode ser muito mais do que um brinquedo: ela pode ser uma importante ferramenta para as crianças lidarem com o luto. Assim, Cady é quem vai sublinhar a falha de Gemma, com seu luto materializando esse "fantasma herdado" do horror.
Desde o início, há um problema sério de comunicação entre elas. Cady "invade" o mundo particular de Gemma e é preciso resolver essa questão. Gemma não sabe como se aproximar da menina e ajudá-la a lidar com seu trauma. A solução, para ela, envolve um terceiro elemento a ser apresentado: M3GAN.
M3GAN: em um arquétipo Frankenstein atualizado, ela pode ser entendida como o monstro ou fantasma a ser aniquilado na história de terror. É um elemento moldável, que reflete as ameaças na 'sombra' e falhas de caráter das protagonistas. Para Gemma, ela não é só um brinquedo. Ela é uma companhia, ela é tudo o que seu filho precisa. Isso a faz abdicar do Petz para trabalhar na boneca, uma escolha climática que a levará a testar sua falha e também ser mais empática com o luto de Cady.
O mesmo objetivo, meios diferentes: a relação entre M3GAN e Gemma é uma relação de rivalidade. É o antagonista que tem o mesmo objetivo da heroína, mas visões diferentes sobre aquilo, opostos de um mesmo desejo. Tanto Gemma quanto M3GAN querem a mesma coisa: o bem de Cady. Mas isso significa coisas diferentes de uma para a outra. Esse espelhamento é uma das bases de uma boa construção protagonista/antagonista.
O segundo ato: aumentando o perigo
No filme, a entrada para o segundo ato se dá quando M3GAN está viva, é sincronizada com Cady e é apresentada ao chefe. Assim, Gemma conquista seu desejo primário: convencer o chefe de investir no seu projeto, graças a Cady. Mas… no terror, a felicidade não costuma durar muito.
Catch: Ao conquistar seu desejo, Gemma recebe o "catch", uma consequência ou um risco inerente a ele. No caso, Cady está diretamente ligada ao projeto. Para subir na carreira e conquistar seu sonho, comercializando a M3GAN, Gemma precisa de Cady. Essa é uma consequência direta de uma decisão tomada pelo chefe, mas alimentada pela protagonista. É algo que ela terá de lidar e se mostrará como uma grande consequência mais tarde.
Parte dessa consequência é o próprio pareamento da menina: essa é a manifestação direta do problema a ser resolvido no final e a ligação se torna mais forte do que o previsto.
É por causa do catch que a narrativa chegará no seu ponto mais baixo mais à frente, onde o desejo primário se torna o pior pesadelo da protagonista. Se o desejo primário é dar vida à M3GAN, seu pior pesadelo necessariamente precisa ser M3GAN estar viva. E isso remete à essência de vida vs morte, matar ou morrer.
Em "Save the Cat!: The Last Book on Screenwriting You'll Ever Need", o autor Blake Snyder aponta um beat importante em qualquer estrutura: o fun and games, ou a promessa da premissa.
Fun and Games: grande parte do segundo ato. M3GAN faz o que Gemma precisa fazer mas que não é capaz – substituir a mãe de Cady. O que parece um conforto fácil, esconde, na verdade, um problema que alimenta a vulnerabilidade da menina. Paralelamente, alimenta também a falha de Gemma em não se conectar com ninguém e focar apenas no seu trabalho. Mas antes dela sofrer essas consequências, as duas vivem divertidas aventuras e brincadeiras. O fun and games estão ligados diretamente ao sucesso de Gemma, que "esconde" a piora da falha.
Em nosso ebook "A Personagem além das fórmulas", falamos muito sobre a relação entre força e falha, já que são essenciais à construção do personagem. M3GAN substitui Gemma em todas as instruções e conexões que ela precisava exercer na vida de Cady. Portanto, M3GAN estimula a falta de empatia da protagonista e Gemma fica ainda mais focada na carreira.
Isso é narrativamente alertado por uma personagem dinâmica que faz papel de aliada, uma colega de trabalho de Gemma. Ainda assim, a protagonista decide ir rumo à falha.
Riscos aumentam: M3GAN mostra que é capaz de “ligar” e “desligar” quando bem entender. Ela é autônoma e está constantemente pareada à Cady, sua maior prioridade. Isso aumenta o perigo do "monstro" e a ameaça à integridade física dos demais.
Esses riscos também são potencializados pela protagonista. M3GAN seguirá à risca as instruções de Gemma o que provará que, no fim, ela é a sua própria inimiga. Ela precisará vencer a sua criação, provando seu instinto de salvar Cady, mesmo que isso signifique sacrificar-se pela menina.
É com essa instrução que M3GAN começa a se tornar hipervigilante e levar a sério qualquer possível ameaça à Cady. Ou seja, M3GAN segue a instrução de Gemma, sua criadora.
Ao contrário do monstro de Frankenstein, M3GAN tem um motivo específico para existir, além de um entendimento maior do que ela realmente é. Só que, por se tratar de um terror com inspirações sci-fi, M3GAN testa esses limites e traz à tona o medo que o ser humano tem de sofrer os descontroles das máquinas.
O diálogo com o horror: somos seres humanos, falhos e frágeis. A máquina, incapaz de fazer essas distinções, por mais desenvolvida que seja, é o inimigo perfeito para um filme de horror. É o ser imortal que nos lembra da nossa própria mortalidade e é capaz de acelerar esse processo.
Em uma apresentação a investidores, Cady se abre pela primeira vez sobre o acidente que matou os pais e M3GAN estabelece uma conexão, convencendo todos do seu valor. Gemma, então, conquista o prestígio que queria (um complemento ao seu objetivo primário): impressionou a todos e vai ganhar mais verba para o projeto. Ela vive o topo dos seus objetivos profissionais, mas consequentemente o ponto mais baixo do seu papel como guardiã de Cady.
Para além de discussões morais extra fílmicas, o filme "M3GAN" deixa claro que, no seu discurso, a carreira e a família não podem coexistir. A discussão temática é de que um lado precisa ser sacrificado pelo outro. Isso vira o dilema, a escolha a ser feita pela protagonista. E, aqui, Gemma vive os louros da sua escolha profissional. Em consequência disso, Cady passa a se afastar ainda mais da tia.
M3GAN, então, entra em uma sucessão de crimes em prol de seu objetivo e Gemma se torna sua maior inimiga.
Progressão da convenção – a iminência da mortalidade: Gemma tem como inimiga um ser imortal e ela precisa enfrentar sua própria mortalidade se quiser superá-la. Ela irá superar M3GAN quando o fato de ser humana der a ela a peça que falta em M3GAN: uma conexão humana e real com Cady.
Um passo em direção à força: Gemma aceita abdicar do trabalho para cuidar de Cady na atividade escolar ao ar livre. Gemma já entende a importância da socialização na vida de Cady e como isso não pode ser substituído por devices. É um grande contraste com a Gemma do primeiro ato, que deixava Cady usar seu tablet pelo tempo que quisesse.
A tensão aumenta e os perigos da obsessão de M3GAN ficam aparentes à Cady. Assim, ela passa de amiga à refém de M3GAN. Ao falar com o investigador, Gemma também entende os perigos dela: a boneca está por trás de 3 mortes. É o fim da sequência que possivelmente representa o midpoint, onde a sorte da protagonista muda violentamente e ela tem uma clareza muito maior do perigo que enfrenta.
Agora, chegar à força exige de Gemma um sacrifício. Quando a protagonista decide pela força e identifica sua falha, é importante mostrar esse passo como um grande desafio. Ela precisará sacrificar algo importante, que alimenta a falha. No seu caso, a apresentação ao público, sua carreira.
Assim, Gemma e Cady finalmente encaram, juntas, a morte dos pais da menina. O luto é o real "fantasma". Elas finalmente desistem da M3GAN e vão embora. Idealmente, porém, esse beat seria mais impactante e traria riscos mais altos.
Terceiro ato: matar ou morrer
Esse é o ato de maior tensionamento narrativo, onde vemos os extremos das temáticas discutidas e também do embate literal entre vida e morte.
Decisão climática: M3GAN, a antagonista, oferece à Gemma o caminho da falha uma última vez. Esse é o momento de Gemma tomar a decisão climática pela força. Quando M3GAN ameaça a sua vida, Gemma se coloca em risco para poupar Cady. É o sacrifício que muda sua trajetória.
No horror, fugir é a primeira reação,, mas no final é preciso enfrentar o monstro.
O pacto com o passado: como mencionamos, para Truby, o horror nasce dessa herança maligna que não nasce com a protagonista, mas deve ser solucionada por ela. A única resposta possível a essa maldição também precisa vir do passado. Sendo assim, enfrentar o monstro envolve necessariamente um retorno à tradição. Resolver esse passado primeiro, então derrotar a ameaça externa.
Cady e Gemma destroem M3GAN com ajuda de Bruce, um brinquedo robótico que Gemma desenvolveu e abandonou num canto (pode-se dizer que esse abandono tem a ver com a sua ambição de carreira e falta de cuidado). Convencionalmente, a protagonista é a responsável por esse enfrentamento, mas, aqui, ela é representada por Bruce, criação sua. Ele, por sua vez, é manipulado por Cady, trazendo uma pincelada de crescimento e transformação para essa personagem.
Esse é o ponto onde não só Gemma aceita seu papel materno, como Cady a aceita como sua mãe substituta. Temos também o falso final, outro beat clássico do horror (e outros gêneros, como o thriller) que Truby discute no seu livro.
Elas, então, derrotam o monstro juntas, materializando o sentido simbólico do enfrentamento do medo da morte. Gemma arranca o rosto falso de M3GAN e encaram o seu vazio, um símbolo para o real vazio emocional da máquina.
Porém, por se tratar de um final "de preparo" para uma franquia, entendemos que a IA não foi destruída e poderá retornar no futuro.
Conclusão
Enquanto "M3GAN" está longe de ser um filme "perfeito", ter um discurso impecável ou ser adorado universalmente, a sua estrutura é uma boa base para falar sobre diversos beats do horror moderno. E não é porque é um blockbuster que não pode lidar com temáticas profundas, como conexão humana, luto e existencialismo.
O CINECLUBE51 acontece mensalmente e a escolha do filme/episódio é sempre votado pelos apoiadores. Quer participar? Conheça nosso Catarse!
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