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Conflito interno vs. externo: sincronia ou oposição?

Entenda essa relação narrativa e escreva personagens melhores 


"I May Destroy You" (HBO).
"I May Destroy You" (HBO). Imagem: reprodução

Conflito narrativo quer dizer combate entre duas personagens? Briga, gritaria e discussão? Pode até ser, mas com certeza não é só isso. Qualquer narrativa ficcional tem pelo menos um conflito, um problema a ser resolvido. Porém, as histórias mais complexas apresentam personagens com conflitos internos que, por sua vez, chocam-se com conflitos externos e vice-versa.


Geralmente, em histórias mais rasas ou mal desenvolvidas, ou tudo se trata inteiramente do estado emocional da protagonista ou ela está apenas preocupada com obstáculos físicos. Idealmente, a combinação do conflito interno e externo num bom roteiro é um paradoxo: está em sincronia, mas também oposição. Isso não só cria elementos da narrativa, como a impulsiona. 


Fico confuso? Explicaremos melhor nesse artigo!


Com base em nossa experiência e nos textos de Edwin Cannistraci e David Wappel, trazemos explicações e dicas para pensar ou analisar a combinação de seus conflitos narrativos. Além disso, nosso ebook "A Personagem além das fórmulas" também traz discussão acerca das diferentes esferas das personagens, articulação de tema, falha/força, arcos, arquétipos, estruturas, emoções e mais. 



Conflito interno = drama emocional


Em termos simples, conflito interno é conflito emocional. Portanto, pode-se pensar no conflito interno como a linha emocional das personagens. É importante rastrear o estado emocional das personagens principais ao longo do roteiro: como se sentem em cada cena, como reagem ao que está acontecendo com elas ou ao redor, etc.


O conflito interno refere-se à luta que ocorre na mente de uma personagem. São as questões que a movem ao longo da trama – mas são questões diferentes do conflito externo, onde ela lida com forças fora de si, como guerras, doenças ou ações de outras pessoas. Esse é o que geralmente "inicia" a história em si.


Assim, o conflito interno é onde o arco de personagem se desenvolve completamente. No final, o conflito interno deve ser resolvido de uma maneira ou de outra (ou não, mas essa é uma escolha que precisa ser tomada com consciência).


Ele também está relacionado aos objetivos e motivações de uma personagem: o que ela mais deseja? Para onde ela está "indo"? O que ou quem a impede?


Se o que deseja mais é uma recompensa material, por exemplo, isso deve ser destacado por um desejo emocional mais profundo. Aprovação da família, superação de um trauma, mudança de crenças, etc. Leia mais sobre isso aqui e aqui.


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"Barry" (HBO). Imagem: reprodução

O conflito interno também tem a ver com a relação desejo/falha/necessidade. Assim, teremos vários elementos narrativos em choque, como, por exemplo, o abismo entre a falha (egoísmo) e a necessidade (altruísmo). Essa noção é essencial para construir o "único protagonista possível para tal história", como diz Jill Chamberlain quando fala de falhas e forças. Leia mais sobre isso.


Exemplos de personagens com conflito interno


Cassandra quer vingar sua amiga, mas também deseja uma vida livre da dor que isso traz à tona. É um pouco similar ao drama de Arabella em "I May Destroy You" em relação e enfrentar traumas pesados.


Maximus quer matar o Imperador, mas também quer que Roma alcance seu potencial. Observe como muitas vezes o conflito interno não precisa ser visto nas emoções do personagem, mas sim em dois objetivos em desacordo. Isso externaliza o conflito por meio de suas escolhas. Outro exemplo disso é Salieri em "Amadeus".


Barry quer parar de ser um assassino de aluguel, mas também não quer ser preso por ser um. Ele é um ótimo exemplo porque o conflito interno pode passar despercebido rapidamente, já que ele é continuamente influenciado por outros (algo interpessoal) e envolvido em situações perigosas (externas). Mas, no fundo, Barry tem um intenso conflito interno sobre suas escolhas para sobreviver e as escolhas que ele gostaria de fazer.


Conflito externo = conflito situacional

Hamlet" (1948).
"Hamlet" (1948). Imagem: reprodução

Por outro lado, o conflito externo é conflito situacional, ou externo. Tem a ver com o incidente incitante, com o tema, a mensagem (se houver), o gênero… e, claro, com quem é a protagonista.


São os obstáculos envolvidos ao realizar um grande assalto, ou lidar com uma casa assombrada, ou tentar não ser pego por um assassino, ou tentar evitar a execução de uma hipoteca em casa – qualquer conflito que demande atenção imediata na realidade do personagem.


Frequentemente, o conflito externo é a trama principal do roteiro. Dependendo do gênero, pode haver também conflitos adicionais causados pelo conflito principal. Por exemplo, em um thriller de sobrevivência, a protagonista está em constante perigo ao longo da história e suas tentativas iniciais de escapar da situação dão geralmente errado, trazendo obstáculos adicionais a serem superados. 


É aqui que entra o paradoxo da combinação do conflito interno e externo: estão em sincronia, mas também em oposição.


 Ou seja: alguém quer alguma coisa (desejo), mas não consegue (conflito externo). Isso gera movimento narrativo (conflito interno e, consequentemente, ações da protagonista). Ou, o conflito externo (guerra) gera um drama interno (sobrevivência) que irá ditar a narrativa. Um não existe sem o outro, mas o conteúdo de cada um será sempre conflituoso.


"Tár"
"Tár" (2022). Imagem: reprodução

Em uma tragédia clássica, essa relação ainda existe, pois por mais que a protagonista inicialmente consiga o que deseja, sua trajetória externa vai se deteriorando até afetar seu interior de maneira irremediável. Simultaneamente, ela só conquistou o que desejou por ter uma característica interna determinante (falha trágica). Um alimenta ou outro.


> Apesar da complicação externa ser "situacional", é preciso cuidado para não desenvolver apenas uma situação ao invés de um arco narrativo de fato. Quem nos alerta isso é, novamente, Jill Chamberlain. Leia mais.


Combinando conflito interno + externo

Hamlet
"Hamlet" (1948). Imagem: reprodução

Como pensar num bom equilíbrio entre os conflitos? O(a) roteirista não precisa necessariamente estar pensando em 'conflito interno vs conflito externo', mas sim interno + externo. Vimos anteriormente que são dois espaços diferentes operando no mesmo plano. 


Por exemplo, Hamlet, na peça de William Shakespeare, apresenta essa combinação muito bem. De maneira bem simplificada, o conflito externo se dá na forma de um possível assassinato de seu pai. Isso gera o famoso drama interno "ser ou não ser", vida ou morte, mesmo que metafórica – hesitação entre buscar vingança ou cumprir seus deveres de príncipe. Por sua vez, essa combinação conflituosa gera uma pergunta narrativa central que mantém a história intrigante: Hamlet irá ou não vingar seu pai?


HOMEM vs. SOCIEDADE: Hamlet vs. Tribunal

Hamlet luta com a corte dinamarquesa (personificado em Cláudio).

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HOMEM vs. SELF: Hamlet vs. Ele mesmo

Matar o tio ou deixar seu ideal de caráter morrer?


O drama interno do personagem foi gerado a partir do conflito externo. E, consequentemente, os demais conflitos serão gerados a partir do dilema interno dele. Essas relações são, geralmente, presentes em histórias que trazem mais ênfase na exploração da promessa emocional ou o estudo de personagem – mas também aparecem em narrativas mais convencionais.


"Identidade Bourne"
"Identidade Bourne" (2002). Imagem: iMDB

Um exemplo é o filme “Identidade Bourne” (The Bourne Identity, 2002). O objetivo do protagonista (que o leva ao segundo ato), apresentado na primeira sequência do filme, é “descobrir quem ele é”.


No Ponto Sem Retorno (ou Plot point 1), Jason tem acesso à identidade que confirma o seu nome: Jason Bourne. Com ela, porém, Bourne encontra diversos outros documentos com vários outros nomes, muito dinheiro e uma arma. Ou seja, além de perigoso, Bourne provavelmente está sendo perseguido.


Isso vai impulsionar a escolha dele de fugir, além de criar outros conflitos baseados no drama interior: "E se eu for um criminoso? E se eu não quiser mais ser quem eu sou?"


Tensão e antecipação


Quando construímos conflitos narrativos, é importante pensar nos elementos de antecipação (onde há uma pergunta ou possibilidade narrativa) e tensão. Afinal, esse último é o coração do conflito.


Tudo estava ok, mas… A protagonista estava bem, até que… algo quebra a expectativa positiva ou natural daquela personagem/situação. Esse algo trará um drama interno, com promessa de evolução emocional e perguntas narrativas a serem respondidas pelas personagens.


Assim fica claro compreender que existe um choque entre desejos e realidades – o que gera uma resposta emocional na personagem e influenciando suas escolhas.


Barry
"Barry" (HBO). Imagem: reprodução

Em seu livro Escrever ficção, o professor e escritor Luiz Antonio de Assis Brasil traz uma fórmula para visualizar tudo isso: 


Fatores externos à personagem + percepções e ações internas da personagem a partir de sua falha/força + tema = conflito principal da história (tensão)


Então, ao construir ou analisar sua protagonista e o conflito principal da história, faça as seguintes perguntas: 


  • Pensando no tema e na falha principal, essa é a única protagonista que poderia passar por esse conflito? 

  • O plot gerará uma boa quantidade de conflito interno e externo? 

  • Quais são as apostas emocionais das personagens principais ao longo do roteiro? 

  • O conflito interno e externo serão entrelaçados ao longo da narrativa? São problemas possíveis, que soam reais?

  • O choque entre desejos e realidades discutem bem o tema que escolhi?

3 dicas para escrever melhores conflitos internos

Tár
"Tár" (2022). Imagem: reprodução

1. Escolhas, escolhas e escolhas

Ao escrever conflito interno (sem que a personagem simplesmente expresse em voz alta sua dificuldade), tente externalizá-lo por meio do contexto. Certifique-se de que o público entenda as escolhas viáveis diante da personagem e reserve tempo para a personagem ponderar essas opções. Esse tempo é necessário para que o peso do drama interno seja palpável e realista, ainda que num universo fantasioso.


E nem precisa ser apenas no Plot point 1 ou no momento de Escolha Climática. Pense nisso como bifurcações no caminho. Um exemplo tosco: se a personagem se aproxima de uma divisão e vai para a direita sem quebrar o ritmo, nunca entenderemos que uma escolha foi feita. Mas se a personagem se aproxima, pausa, olha para a esquerda e para a direita, depois faz uma careta e vai relutantemente para a direita, veremos que uma escolha foi deliberada e feita. 


Observe também que a careta, ainda que um símbolo rudimentar, fornece um pouco de interpretação emocional. A relutância mostra que não foi necessariamente fácil, levando o público ou leitor a inferir que houve algum tipo de conflito na mente do personagem.


"I May Destroy You"
"I May Destroy You" (HBO). Imagem: reprodução

Certifique-se de que as opções sejam claras, ainda que essa revelação não seja linear ou imediata. Podemos entender as escolhas das personagens mais tarde na narrativa, como uma revelação climática, desde que esteja presente.


2. Deixe o público decifrar

Uma das grandes vantagens do conflito interno é que o público ou leitor(a) fará grande parte do trabalho por você. Seu roteiro não precisa de um voice over apenas para explicar o drama interno. Não precisa fazer com que os personagens expressem seus sentimentos em voz alta. 


Em vez disso, o(a) espectador(a) projetará uma mente interior nos seus personagens, baseado no gênero, universo e tom da história.


Colocar escolhas irreconciliáveis diante de suas personagens as forçará a entrar em dúvida, mesmo que nunca seja explicitado. Mesmo que seja uma narrativa metafórica, alusiva ou abstrata, nem tudo precisa ser esmiuçado para ser entendido emocionalmente. Confie no drama!


3. Escolha um conflito principal que reflita sua visão

O que você quer mudar no mundo? O que precisa externalizar como um problema ou situação que traz possibilidades dramáticas? Qual é o sentimento ou injustiça que quer esmiuçar?


Além de desenvolver bem a tensão e a antecipação do público, escolha um incidente ou sentimento que seja pessoal. Isso abrirá portas para um aprofundamento emocional maior, influenciando, por sua vez, os conflitos internos e externos da sua história.


Coloque sua realidade nas narrativas! O mundo da ficção sempre precisa de novas vozes.


Conclusão

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"Barry" (HBO). Imagem: reprodução

Os diferentes tipos de conflito estão em sincronia ou oposição? Como vimos ao longo do artigo, os dois! Um gera o outro, mas suas cargas são opositoras.


Em histórias mais simples, a personagem consegue o que quer, fica feliz e era isso. Mas cadê a antecipação? A tensão entre as pessoas? O romance, o terror, a superação de limites?


Além desse artigo, separamos algumas leituras para pensar nessa dupla narrativa tão importante. Os apoiadores de nosso Catarse também receberão conteúdo extra sobre essa e vários outros assuntos.



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