Como vender gêneros híbridos? Como desenvolver personagens complexas, que carreguem discussões? Conheça o processo da roteirista-chefe Manuela Cantuária na série com o Porta dos Fundos e Paramount+
Roteiristas de todo o Brasil sonham com sua série original produzida do jeito que imagina. Muitos também têm a ambição de chefiar a sala do próprio projeto, ou então, conseguir negociar um projeto com elementos híbridos ou fora do esperado. Mas como viabilizar tudo isso? Quais as melhores estratégias?
É aí que entra o processo da roteirista Manuela Cantuária, que terá sua série original "As Seguidoras" produzida pela VIS, uma divisão da ViacomCBS, e o Porta dos Fundos - o primeiro conteúdo original do Paramount+ no Brasil.
A série segue a história de Liv (Maria Bopp), uma influenciadora digital que leva sua obsessão por ganhar seguidores às últimas consequências e se transforma em uma serial killer acima de qualquer suspeita. João Vicente de Castro é o produtor e a série conta com a direção de Mariana Youssef e Mariana Bastos. A criação e roteiro são de Manuela Cantuária, a sala também contou com Nina Kopko, Pedro Perazzo, Beatriz Leal e Tainá Mühringer e a consultoria foi de Camila Agustini.
Conversamos com Manuela sobre seu trabalho com viés feminista, atual e irreverente, bem como sobre o processo de venda e desenvolvimento de "As Seguidoras". Acompanhe e confira as dicas da autora para desenvolver melhor sua bíblia de venda, saber a importância da pesquisa, da comunicação e mais!
Quem é Manuela Cantuária?
Manuela Cantuária trabalha com desenvolvimento e roteiro de projetos para TV, cinema e internet. Seu projeto mais recente é o roteiro de "As Seguidoras", primeira série do Porta dos Fundos para a Paramount+.
No cinema, Manuela foi corroteirista do longa "Cedo Demais", com direção de José Lavigne, e assistente de roteiro do filme "Palavras Queimadas", de Ruy Guerra. Na TV, Manuela escreveu episódios nas séries "Nós", do Canal Brasil, "Escola de Gênios", do Gloob, e "A Garota da Moto", do SBT, entre outras.
Experiência com esquetes no Porta dos Fundos
O foco da escrita de Manuela sempre foi sala de roteiro e séries. Até quando escreve longa-metragens, a roteirista gosta de ter colaboradores. "Passei por várias salas de roteiro - seja canal por assinatura, TV aberta - até o momento em que vim pro Porta dos Fundos. Aí, a demanda principal eram esquetes de humor", conta.
É um formato diferente do de série. Eu costumo dizer que é um processo contrário: na série, primeiro você pensa no conceito, no universo, no personagem, até chegar na cena. Mas na esquete de humor, você já parte de uma situação. - Manuela Cantuária
Ela conta que o processo de trabalhar no Porta dos Fundos foi muito interessante porque sempre teve "uma acidez no humor que combinava com o Porta". Lá, Manuela conta sobre um dos privilégios de trabalhar com o formato de esquetes: "Fiquei muito impressionada com a visibilidade que você tem como roteirista, porque é muito louco você ver as coisas sendo filmadas tão rápido".
Além disso, a roteirista fala sobre a crescente demanda por conteúdos femininos dentro da produtora. "Foi muito legal explorar esse espaço para trazer discussões feministas. É um ambiente onde você se sente livre para criar e abordar assuntos mais polêmicos.", afirma.
"Nesse processo, entrei pro time da Folha de colunistas, onde exercito esse mesmo pensamento de ver o que anda acontecendo atualmente e extrair humor disso", continua. A roteirista afirma que isso acabou também ajudando a construir a sua linguagem como roteirista e criadora - não só de comédia, mas também dramédia, outros gêneros e outros formatos.
E quanto a "As Seguidoras", seu último projeto? "O Porta é uma produtora de conteúdo que também trabalha com séries. Essa demanda surgiu e então eu comecei a desenvolver séries lá dentro", explica.
Do conceito ao greenlight, passando pela pauta feminista
De acordo com Manuela, o projeto da série "As Seguidoras" passou por várias etapas. Como tudo começou? "Fiz um pitching interno, para os sócios e CEO do Porta, etc. Depois, fizemos pitching para a Viacom e acabamos vendendo para a Paramount+", conta ela.
Desenvolvi uma bíblia, com perfis dos personagens, universo, justificativa. Quando você começa no mercado, não imagina que vai vender o projeto logo de cara , até porque isso não acontece com frequência. Depois, registrei e usei a série como um projeto de portfólio, para ter na manga, pronto pra quando surgisse uma oportunidade. Quatro anos depois, fiz o pitching desse projeto e ele foi bem recebido, e aí parti pra fazer uma bíblia de venda mesmo, aprofundando ainda mais o conteúdo. - Manuela Cantuária
A roteirista explica que a partir daí houve um investimento do Porta como produtora e que a bíblia de venda da série foi desenvolvida junto da roteirista Tainá Mühringer, que depois entrou na sala de roteiro. "Fizemos sinopses mais consistentes e focamos no que o projeto tem de mais interessante", diz.
Para quem tem projeto na gaveta, é importante ir aprimorando ele de tempos em tempos. A partir do momento que você tiver um tempo, é importante investir. Quando o projeto chega consistente, já faz uma diferença enorme para quem lê. - Manuela Cantuária
Portanto, fica fácil entender os motivos de se desenvolver a série para além da premissa já na hora da venda ou reunião de negócios. A premissa pode ser o ponto de partida, mas é preciso já ter em mente o arco geral da temporada e seu desfecho, bem como os rumos para as próximas temporadas. Isso deixa bem claro que você tem controle da sua narrativa e entende a demanda por conteúdos vendáveis e que precisam "lucrar" mais temporadas.
Para Manuela, "A bíblia precisa fazer jus à premissa, desenvolver o miolo. Nisso, me ajuda fazer parcerias para levantar arco de temporada, de personagem. É muito importante essa criação em conjunto, o projeto cresce muito".
Outro ponto essencial que envolve a trajetória de "As Seguidoras" é a temática e vivência feminista. "Quando entrei nesse mercado, era uma época que já começavam a discutir a representatividade feminina nas salas de roteiro, etc.", conta Manuela.
"Em Hollywood, isso já estava acontecendo, várias protagonistas mulheres começaram a surgir. Mas as principais referências ainda eram os Homens Difíceis - anti heróis, protagonistas difíceis, com falhas, vilanescos, etc. A partir disso comecei a pensar: 'Está na hora das mulheres difíceis, cadê elas?'", afirma a roteirista.
Para Manuela, essa mistura de urgência, interesse e reflexão foi uma das sementes de "As Seguidoras".
Fui me apaixonando por séries como 'Fleabag'; já tinha a referência da Fernanda Young, que me mostrou que dá pra ser roteirista de humor, ser ácida, estar à frente das pautas. Nessa época, minha vontade era criar um projeto sobre como as redes sociais enlouquecem as pessoas. Eu mesma estava viciada em Instagram e via as blogueiras que lucravam com um discurso de autoestima, mas que faziam você se sentir mal! Foi aí que comecei a refletir sobre a positividade tóxica. Então, pensei: 'Imagina uma blogueira que é uma farsa, que se diz good vibes e 'pura vida'.. O que seria o oposto disso na vida real? Bom, só poderia ser a morte. …' Foi aí que nossa heroína virou uma serial killer. - Manuela Cantuária
Mas não foram só essas as fontes de inspiração. "A cultura do cancelamento também influenciou bastante o conceito da série. O medo de ser cancelada é o gatilho que faz a personagem andar com a história", conta ela. "E, claro, há o desafio de fazer um projeto no Brasil em que a protagonista é uma anti-heroína, uma assassina em série. Tivemos que construir vários desafios para ela e aí surgiu nossa segunda protagonista, que é a personagem Antônia, a podcaster que investiga os assassinatos que ela comete", explica.
"Para a gente defender essas personagens femininas e uma série que também fala sobre autoestima, sobre ser uma mulher no mundo, sobre como você é subestimada por ser mulher, tivemos que montar uma equipe majoritariamente feminina", afirma Manuela. Portanto, a sala de roteiro foi composta também por Nina Kopko, Beatriz Leal, Tainá Mühringer e Pedro Perazzo, com consultoria de Camila Agustini.
Eventualmente, surgiram outros desafios: equipe e elenco. "Precisávamos de uma protagonista com muito carisma que pudesse defender essa personagem que é uma assassina. O público pode até amar odiá-la, mas tem que entender as motivações e traumas do passado dela. A Maria [Bopp] conseguiu trazer uma ironia perfeita pra isso", opina Manuela.
"Aí, entraram também as diretoras maravilhosas que deram o sangue pelo projeto: Mariana Youssef e Mariana Bastos", fala a roteirista. "Elas encararam o desafio de saber como olhar esse tipo de projeto, na hora de filmar a violência, não trazer aquele sadismo tipicamente masculino. Acho que a sutileza nesse olhar é até mais dilacerante mesmo. Elas brilharam muito e eu não conseguiria imaginar essa série sendo dirigida por um homem, até para que as atrizes se sentissem à vontade no set", comenta.
Além disso, outra preocupação foi a diversidade de elenco e equipe, algo que toda a produção lidou com muita atenção desde o início do processo.
Processo de pesquisa: uma etapa fundamental
Manuela também dividiu um pouco sobre o universo de quem cria conteúdos com questões específicas, como investigação criminal. "Se você pesquisar o processo investigativo de homicídios no Brasil, é muito diferente daquele clichê americano que é uma dupla de policiais, etc. Tem muita gente envolvida e é mais confuso", explica. "Então [na série], temos uma pessoa aparentemente comum cometendo crimes e uma pessoa aparentemente comum investigando esses assassinatos."
Para Manuela, os interesses e referências do true crime vieram com tudo na hora de discutir a narrativa na sala de roteiro. "Adorei 'Serial' e 'Praia dos Ossos', entendendo que era um recurso narrativo genial para a gente, já que é um 'voice over chique'. Outra referência muito boa que ajudou muito na estética foi 'Don't F**k with Cats: Uma Caçada Online', já que é uma caçada virtual. Temos muito da estética de tela de computador na nossa série, algo que é bem desafiador", conta.
Para poder entender como deixar mais claro para quem assiste, é preciso conhecer bem a linguagem do screen life. Comece lendo nossa matéria sobre isso!
O processo de pesquisa na construção de "As Seguidoras" foi extremamente importante e realizado pela pesquisadora Suzane Jardim - "uma excelente profissional que foi a fundo nas coisas", de acordo com Manuela. "Ela mapeou todas as influencers desse nicho, podcasters de true crime, informações sobre o passado que construímos pras personagens. Uma pesquisa muito completa nesse sentido, que serviu como uma bússola para a gente".
Você não pode criar um projeto sem entender as especificidades daquele universo. Senão, fica uma coisa meio mundo das fadas e a série vai perdendo a verdade. - Manuela Cantuária
A pesquisa sobre serial killers também foi fundamental. "Tem que entender que tipo de assassina ela é, qual o Modus Operandi, o perfil das vítimas, o gatilho, o trauma. A gente teve que construir uma personagem blogueira serial killer e entender onde se cruzava esse delírio dessa pessoa", conta ela. "Esse foi um momento muito importante da pesquisa, porque às vezes a protagonista fazia coisas que, no entendimento do roteiro, parecia não fazer muito sentido, mas que era fiel ao perfil psicológico do serial killer".
Chefiando a sala de roteiro de "As Seguidoras"
Essa foi a primeira experiência de Manuela como roteirista-chefe. "Achei muito interessante o processo de chefia de sala", conta. "Foi muito enriquecedor porque sempre fui uma roteirista que entrou muito de cabeça nos projetos".
Quando você tem oportunidade de criar a série e também chefiar a sala, é muito mais cansativo, mas você confia no processo, nos rumos que a história está tomando. Como roteirista, você tem que se adaptar à visão do roteirista-chefe da sala mas, às vezes, a gente passa por processos em que não se identifica com os caminhos propostos e isso pode ser mais cansativo do que chefiar uma sala na qual você acredita no conteúdo. - Manuela Cantuária
Além de ter sido uma sala de roteiro virtual, um dos principais desafios foi a concomitância com a pré-produção, já que o tempo desde o greenlight e a finalização de "As Seguidoras" foi de um ano.
"Não é muito comum e foi a primeira vez que passei por um processo tão agilizado", divide Manuela. "Por isso, essa equipe - tanto da sala quanto da produção e pós - foi extremamente especial e comprometida com o projeto, trabalhando para entregar o melhor produto possível", finaliza.
Gêneros híbridos e personagens anti heroínas: abertura e desafios
Todx roteirista já teve aquele momento de construir a sua série perfeita, misturando ou não diversos gêneros, influências e tipos de personagem. Mas como o mercado enxerga isso?
Manuela oferece a sua experiência: "Quando criei o projeto, eu gostei, me serviu de portfólio. Mas, como roteiristas, acabamos sendo absorvidas por convite de terceiros. Então, 4 anos depois, eu continuava trabalhando e o projeto já tinha ficado sólido", conta.
O processo de 4 anos [de desenvolvimento próprio] foi importante, porque, talvez, se essa série vingasse lá atrás, eu não teria experiência nem maturidade para tocar essa sala de roteiro. - Manuela Cantuária
"As Seguidoras" é uma série de dramédia, com um hibridismo de outros gêneros. "Foi desafiador'', pontua a roteirista. "É difícil levantar um projeto híbrido de gêneros, com poucas referências aqui no Brasil desse tipo de produto. Bebi muito na fonte de 'Fargo', 'Barry' e 'Killing Eve', que ficam nesse limiar de gêneros também", diz.
Sobre o processo de venda, Manuela concorda que esse hibridismo é difícil de comunicar. Além disso, ela já estava ciente do desafio que seria defender esse tipo de protagonista e de saga. "Desde o primeiro momento, tentei deixar claro que o projeto não ia ter aquela sanguinolência tarantinesca", comenta. "A gente vai construindo as coisas, já que ser 'clean' tem tudo a ver com a estética da série.”
Ela pontua: "Eu acho que essa série tem uma premissa matadora [risos]. Então, a série já tinha isso a favor dela e foi um processo de venda relativamente 'rápido'".
Outro ponto positivo foi a relação com a Paramount+ que, de acordo com Manuela, "foi ótima". "A gente se reunia periodicamente e teve a oportunidade de afinar todas as questões e sensibilidades do projeto. Havia também a empolgação do canal com a série", afirma.
Claro que, como sempre, existiram preocupações com o conteúdo de ambos os lados. "Recebemos notas, que fazem parte do processo de reescrita normal da sala de roteiro, tudo para o projeto melhorar", conta.
Acho muito importante que o roteirista tenha um vínculo periódico com o canal para que todo mundo esteja sempre na mesma página e não atravancar o processo. Assim, não vem nenhuma 'surpresinha'. Quando chega a entrega, está todo mundo alinhado. - Manuela Cantuária
Aqui fica claro que a comunicação é chave para que o processo flua não só dentro da sala de roteiro como fora dela - com a produtora, com o canal e até com equipe, se precisar.
E o futuro para Manuela Cantuária? Ela afirma que está com mais projetos por aí, inclusive um sobre sexualidade feminina, outros que também envolvem crimes e feminismo, um podcast e muitos outros que irão conversar com o público feminino através da dramédia e da linguagem "ácida" típica da roteirista.
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