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Raio-X: Escrevendo “Sintonia”, com Luíza Fazio

Entenda melhor os processos por trás do desenvolvimento de um dos maiores sucessos nacionais da Netflix

Imagem: Reprodução

Por Guilherme Soares Zanella

Colaboração: Telson Reis Júnior


Vivemos rodeados por referências. Como roteiristas, utilizamos essas referências como ferramentas de trabalho - do momento da concepção ao pitching de venda. Você já reparou como boa parte dessas referências são séries e filmes internacionais? Destes, quantos deles são desenvolvidos na indústria hollywoodiana?


Com o objetivo de falar mais sobre o nosso audiovisual brasileiro e utilizá-lo como inspiração para projetos futuros, iniciamos uma nova categoria no Writer’s Room 51 - o “Raio-X”. Assim como o próprio nome sugere, buscamos uma leitura aprofundada, onde selecionamos séries e filmes brasileiros, conversamos com roteiristas envolvidos no processo e dissecamos elementos importantes do seu desenvolvimento.


Começamos com chave de ouro conversando com Luíza Fazio, roteirista de “Sintonia”. Fazio, que acompanha o projeto desde seus primeiros passos na Netflix, fala sobre a evolução da trama, seu envolvimento com a série e detalha alguns processos que rolaram na sala de roteiro.

Conheça “Sintonia” (Netflix)

Imagem: Reprodução

Sucesso da Netflix, “Sintonia” acompanha a jornada de três jovens da periferia correndo atrás dos seus sonhos. Doni (Christian Malheiros), Nando (MC Jottapê) e Rita (Bruna Mascarenhas) são amigos de infância inseparáveis que moram na mesma favela, em São Paulo.


Crescendo juntos na dura realidade da comunidade, cada um deles trilha um caminho diferente, mas sempre contando com o apoio da amizade que vem de anos. Enquanto Doni se dedica ao funk como MC e Rita encontra sua vocação na igreja evangélica, Nando descobre o mundo do tráfico de drogas e todo o seu papel na comunidade onde vivem.


De forma crua e ao mesmo tempo empolgante, a série entra em temas delicados como as organizações criminosas na periferia, o papel da religião e os louros e presepadas no mundo da música. “Sintonia” oferece ao espectador um olhar intimista sobre a juventude brasileira de uma forma nunca antes vista, encantando cada vez mais o público com seus números recordes - A 2ª temporada de Sintonia estreou no dia 17 de outubro de 2021 e logo chegou ao Top 10 da Netflix.

Quem é Luíza Fazio?

Imagem: Liel Marin

Luíza Fazio é roteirista e escreveu “Sintonia” (Netflix), a série brasileira mais assistida em 2019 e a terceira mais vista do canal de streaming no ano, ultrapassando Stranger Things e Sex Education. Possui especialização em roteiro pela University of California Los Angeles (UCLA), o que lhe deu bagagem para escrever a segunda temporada de “Cidade Invisível” (Netflix) — número 1 em mais de 40 países; “Sentença”, série de thriller dramático para Amazon Prime (prevista para 2022); LOV3, dramédia para Amazon Prime (2022); a série documental LEXA (Globoplay) e as séries de comédia Carenteners (Warner) e Samantha! (Netflix).


Por dois anos foi roteirista fixa da produtora LB Entertainment, indicada ao Emmy, desenvolvendo projetos para players internacionais. Recentemente, Luíza foi nomeada pela embaixada dos Estados Unidos em Brasília para a residência International Writing Program (IWP), que desde 1967 reúne anualmente 35 escritores selecionados de todas as partes do mundo.

'Sintonia': como tudo começou

Imagem: Liel Marin

Quando ainda era apenas um projeto em sua primeira versão, “Sintonia” cruzou de forma inesperada o caminho de Luíza Fazio. Na época, Fazio trabalhava como assistente de roteiro na série “Samantha!”, produzida pela LB Entertainment.


“Eu vi o Kondzilla entrando lá pra uma reunião. (...) Aí eu cheguei no Felipe [Braga] e falei: ‘Felipe, o que ele tá fazendo aqui? Eu quero participar’”, comenta Fazio, ressaltando sua relação com o funk da baixada santista.


A roteirista passou a participar das primeiras reuniões de brainstorming do projeto que viria a se tornar “Sintonia”, idealizado pelo Kondzilla, inicialmente um curta-metragem sobre 3 amigos que queriam comprar um tênis de luxo, mas que logo se transformou no embrião de uma série ao ser apresentada para Felipe Braga e Rita Moraes e então desenvolvida junto do roteirista Guilherme Quintella.

“Nas primeiras reuniões eu tava realmente fazendo a ata. Eu ficava calada, escrevendo textos... E aí eu fui, aos pouquinhos, tentando falar uma coisa, outra, mostrar presença, mostrar que eu sabia sobre o universo, que eu entendia sobre o trabalho do Kond.” - Luíza Fazio

Assim, Luíza acompanhou e trabalhou no desenvolvimento da bíblia de venda da série, que acabou por ser vendida para a Netflix. Na primeira temporada de “Sintonia”, Fazio atuou na posição de coordenadora de roteiro - “um híbrido entre assistente e roteirista, que faz a comunicação também com a produção”, em suas próprias palavras.

“Uma bíblia é um cadáver. Você vai pegar isso, vai mudar tudo, vai criar outra coisa. A bíblia do ‘Sintonia’ não foi diferente. Dessa ideia inicial de curta até a bíblia de venda, até o que a série é hoje, ela mudou muito em relação a quem são as personagens e a relação de tom da série.” - Luíza Fazio

Na segunda temporada, Luíza já atua como roteirista e assina o quarto episódio da série. A seguir, entraremos em detalhes sobre a sala de roteiro e a construção do episódio em si.

A sala de roteiro de “Sintonia”


A sala de ‘Sintonia’ era muito horizontal. Eu saía pra fazer pesquisa por conta própria, voltava, trazia ideias”, explica Fazio, trazendo o exemplo da personagem Rita. A ideia de Rita vender mercadoria no metrô (“marreteira”, no popular) foi uma sugestão própria. Ela conta que tinha amigas que trabalhavam com isso, então aproveitou para acompanhá-las e fazer um verdadeiro trabalho de pesquisa.


Segundo a roteirista, esse sistema horizontal, onde cada profissional tinha certa autonomia para trazer seus inputs, independente do cargo em questão, ajudou a construir uma série com “muitas visões de mundo”. Por fim, naturalmente cabe ao roteirista-chefe (Pedro Furtado) decidir o que fica e o que sai.


Na segunda temporada, Luíza conta que cada roteirista ficou responsável por escrever um episódio.

“Na segunda temporada, como as vozes já eram super definidas, ficou mais fácil para todo mundo escrever o seu próprio roteiro.” - Luíza Fazio

Seu episódio em questão, o quarto da temporada, é o que os norte-americanos chamam de bottle episode. Trata-se de um episódio que se passa quase que completamente na mesma locação com as mesmas personagens, um verdadeiro desafio para qualquer roteirista.

“Sintonia” - Temporada 2, Episódio 4: Dissecando o roteiro

Imagem: Reprodução

“Eu escrevi ele umas cinco, seis vezes. Em cada novo tratamento eu fazia uma nova pesquisa, novos filmes, pesquisava bottle episodes”, revela Luíza, que teve de segurar cenas de extrema tensão quase que integralmente na base do diálogo.

O quarto episódio da segunda temporada tem duas locações: a mercearia, um espaço pequeno e claustrofóbico, e um terreno baldio. Fazio conta que seu briefing para escrever o episódio era simples: “Miro (agiota da comunidade) vai cobrar a dívida do Doni na mercearia”. Pronto - a partir daí, das ações aos diálogos, ficava a cargo de Luíza Fazio propor sua versão dos fatos.


Seu mergulho em referências de episódios de série e filmes que se passam em poucas locações passou por obras como “Doze Homens e Uma Sentença” (1957), que Fazio diz ter assistido quase 10 vezes, e “Deus da Carnificina” (2011), adaptação cinematográfica de uma peça da dramaturga Yasmina Reza.

“Além de escrever o roteiro em si, eu também tinha que entender essa estética e dinâmica que é basicamente diálogo, não tem muita ação ali. Para mim foi um desafio, eu nunca tinha escrito um bottle episode. Tem que saber se a tensão realmente estava existindo ali, se realmente aquela questão da dívida fazia sentido.” - Luíza Fazio

O quarto episódio é onde a tensão da temporada se encontra em seu ápice até então. Spoilers à parte, é o episódio onde vemos certas consequências adquirirem níveis perigosos para as personagens de “Sintonia”.


Para Fazio, encontrar o tom da cena e os diálogos certeiros levou algumas versões, o que é natural em qualquer roteiro (ainda mais em episódios bottle). Embora venha com grandes desafios, o recurso de enclausurar personagens com desavenças é muito poderoso na hora de esticar a corda da tensão.

A pesquisa


Para Fazio, a pesquisa é uma etapa fundamental em qualquer processo. Em “Sintonia”, que lida com assuntos e pautas sociais tão sensíveis, a pesquisa ajuda a moldar diversas personagens da trama.

“Eu fui conversar com uma líder comunitária na extrema zona oeste. Como é que era essa questão de ser líder comunitária? Como é que era essa questão em relação ao crime? Como é que fica essa questão política dentro da comunidade? Todas essas coisas, eu sempre acho melhor ir conversar na fonte.” - Luíza Fazio

Para além das reflexões mais profundas, Fazio conta que a pesquisa também a auxilia a compreender o dia a dia dessas pessoas. Assim, é possível enriquecer a personagem com trejeitos, traços de comportamento e tantos outros pontos.


Com a Pandemia da COVID-19, o jeito foi utilizar a internet para manter suas pesquisas. Por sorte, é possível procurar possíveis fontes de informação por qualquer rede social sem muitas dificuldades. Pelo contrário, Fazio salienta o prazer que as pessoas têm em falar sobre suas vidas. “Às vezes falo por 3 horas com a pessoa, esse é um processo que eu gosto muito”, completa.


Se a pesquisa não é o suficiente para despertar a inspiração, Luiza Fazio dá o recado: “Às vezes não adianta você ficar batendo cabeça, às vezes é melhor você pegar um filme para assistir. Vendo reações das personagens dentro do filme, ajuda a desbloquear uma ideia para o seu próprio episódio”.



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