Em nosso novo Desafio, exploramos mais três roteiros de leitores da página para entender como construir atmosferas poderosas em roteiros
Você valoriza as descrições dos seus roteiros? Existe um perfil de roteirista que busca ser o mais prático e sucinto possível. Embora não esteja errado, caso essa estratégia seja levada às últimas consequências, você pode acabar prejudicando a atmosfera da sua obra.
Afinal, como funciona essa coisa de construir atmosfera no roteiro? Roteiro, como bem sabemos, não é apenas um mapa, um guia com falas e descrições. É claro que o objetivo final de um roteiro é se tornar um filme ou série, mas não podemos esquecer que o primeiro contato ainda será com a escrita.
Para potencializar a experiência desse primeiro leitor, a construção da atmosfera fará toda a diferença no momento da leitura. Você não quer apenas apresentar uma cena de ação ou um diálogo dramático. Você quer que o seu primeiro leitor se sinta parte do seu universo narrativo e que em momento algum sinta que está lendo apenas um manual de instruções genérico.
Vamos explorar melhor esse tema a seguir, mas antes de mais nada não deixe de conferir o vídeo produzido pela nossa parceira Carol Santoian, que se inspirou em alguns dos roteiros selecionados em nosso Desafio para falar do tópico! Assista:
Tchekhov e a atmosfera
Em um artigo bem interessante no portal Industrial Scripts, o famoso princípio de Tchekhov é resgatado para lançar uma luz sobre esse tema. Nele, o dramaturgo sugere que se o autor apresenta uma arma no primeiro capítulo de uma história, essa mesma arma precisa ser disparada em um capítulo posterior. Se ela não for disparada, então ela não deveria estar lá.
Para compreendermos o papel desse princípio na construção ativa da atmosfera de um filme, a matéria traça um paralelo com o filme “Corra!” (2017), do cineasta Jordan Peele.
Em um primeiro momento, a cabeça do animal morto exibida como um troféu serve como elemento atmosférico. Chris se encontra em um ambiente hostil e predatório. O elemento, enfim, não encerra sua participação ali. Pelo contrário - acaba se tornando elemento ativo no plot. Chris utiliza a cabeça do animal para salvar sua vida próximo do final do filme.
Construindo atmosferas
Segundo matéria da Scriptmag, “atmosfera é a experiência visceral criada pelo ambiente de uma cena”. Em outras palavras, a sensação construída a partir dos próprios elementos que compõem a ambientação, de objetos à questões naturais.
Para isso, como mencionamos, não basta distribuir descrições genéricas. É preciso “ir além do óbvio”. A atmosfera em um roteiro mostra o domínio do artista sobre o seu universo, que deve apresentar uma singularidade. De acordo com a matéria, existem pelo menos três grandes oportunidades para explorarmos a atmosfera em um roteiro.
Atmosfera pela locação
O local onde a história acontece exerce uma força determinante na hora de criar uma atmosfera única. A matéria da Scriptmag apresenta a cena de abertura de “Cidadão Kane” (1941) como grande exemplo desse ponto.
Elementos descritos como “uma janela, distante, iluminada”, “em volta quase tudo é escuro” e o imenso “K” apresentado na cena ajudam a construir uma atmosfera única e sinistra, que denota uma tristeza aparente.
Atmosfera pelos elementos naturais
Além do local em si, elementos naturais como clima e momento do dia também ajudam a otimizar a atmosfera da história. A tempestade do outro lado da janela fechada do castelo sombrio não é por acaso! Bem como a neve aparentemente infinita que reforça o isolamento melancólico daquele casebre de madeira.
Atmosfera através da música
Essa não podia faltar: a música é capaz de extrair de nós uma série de sensações e também é um elemento poderoso na hora de construir atmosfera. Sugerir música no roteiro pode muito bem ajudar a criar aquele clima de solidão, ou felicidade, ou mesmo indicar que uma personagem fez uma importante descoberta. Sem contar nos filmes de faroeste, que são campeões na arte de apresentar um perigoso forasteiro a partir de indicações musicais.
Sobre o uso da música e ritmo no roteiro, escrevemos um outro artigo que você pode acessar através deste link!
A atmosfera nos roteiros dos nossos leitores
Vamos começar nossas análises com o roteiro "Às Seis, em Ponto", de Andréa Cohim. Quem comenta o roteiro é Carol Santoian, que destaca a pressa do roteiro em ressaltar alguns dos seus elementos estranhos na construção da atmosfera de terror.
“Nas primeiras cinco páginas do roteiro somos apresentados a Dolores - uma mulher um tanto misteriosa, que trabalha atendendo pessoas em uma ONG e que assiste programas de TV sensacionalistas”, começa Santoian, que completa:
“A cena inicial é pontual em apresentar que estamos diante de um roteiro de terror. Mas, se por um lado é interessante evidenciar os elementos do gênero, por outro, nós temos uma cena gore que não nos dá medo ou gera tensão. A construção se apressa em indicar que há algo de estranho ali - com sons e barulhos que abrem o roteiro. Acredito que para a construção da tensão, a cena poderia partir de algo mais cotidiano e, aos poucos, introduzir os elementos que o perturbam (como o rádio que toca, as pancadas e os sibilos). Dessa forma, quando o vestido e seus efeitos no corpo da protagonista fossem mostrados, eles teriam mais impacto em nós e não seriam apenas imagens grotescas. Mas, mesmo que essa introdução peque em construir essa tensão, o som é trabalhado de forma interessante no roteiro, devendo apenas ter cuidado para não ser banalizado”.
Segundo Santoian, as reflexões e curiosidades que as cinco primeiras páginas de “Às Seis, em Ponto” deixa no imaginário do leitor são interessantes o suficiente para seguir adiante (o que é muito importante em um roteiro). A construção da atmosfera, de uma maneira simplificada, confere “sabor às palavras”. Manter a curiosidade do leitor (e, consequentemente, do futuro espectador) é um dos grandes objetivos aqui.
“Essa apresentação fragmentada, que pretende criar um mistério ao redor da protagonista, é eficiente em gerar curiosidade, mas, por não explicar quase nada sobre o que realmente se trata a trama, acaba por transformar tal qualidade em confusão”, comenta Santoian, ressaltando um cuidado importante. A atmosfera deve trabalhar a favor da trama e não torná-la ainda mais confusa.
Para entendermos na prática a construção de atmosfera através dos elementos do ambiente, Ian Perlungieri comenta o roteiro “Ocultos”, de Igor Fonseca.
Ian destaca os elementos que trabalham a favor da atmosfera na trama:
“Nas primeiras cinco páginas de Ocultos, de Igor Fonseca, nos aproximamos de um casebre meio escondido por um milharal. É lá que conhecemos Ana, que tenta fazer seu filho recém-nascido dormir. Em seguida, ela atende uma ligação da mãe e, em razão do sinal da telefonia celular, precisa ir para fora de casa informar para a mãe os pormenores do batismo do filho na semana seguinte. Terminada a ligação, um barulho esquisito vindo da plantação lhe desperta estranheza, mas é só o seu cão, Thor. Porém, o cachorro passa a rosnar para o milharal, enquanto outros cães nas proximidades latem e uivam. Thor avança contra o milharal e desaparece da vista de Ana, mas conseguimos escutar um uivo de dor e, em seguida, o silêncio”.
Para reforçar a tensão, o roteiro cria um impedimento que dispara uma ação da personagem, que então precisa se deslocar para fora da casa se quiser se comunicar com a mãe. Pequenos elementos surgem e reforçam a atmosfera estranha daquele ambiente, mas são facilmente explicados pelo roteiro. Até que o cão começa a rosnar para o milharal, um ambiente denso e estranho, que deixa para a imaginação do leitor tudo o que possivelmente há do outro lado.
“As cinco primeiras páginas de Ocultos são eficientes, estabelecendo claramente o tom do projeto. O isolamento interiorano, a ameaça invisível e as referências religiosas – como o batismo e a oração de Ana – se inspiram em clichês do horror para estabelecer um pacto muito claro com seu espectador, o que é sempre bem-vindo”, comenta Ian. De fato, a utilização de elementos que fazem parte do imaginário popular associado a determinados gêneros é um atalho muito interessante para uma atmosfera imediata. Afinal, o leitor já associa certos elementos a determinados climas. Assim, o autor pode “surfar a onda” desses elementos, ou mesmo quebrar suas expectativas.
Sobre a ambientação, Ian levanta certas sugestões:
“Nota-se, porém, que apesar de apresentar coesão temática em seu início, a ambientação do projeto poderia ser ainda mais explorada. A tensão com o desconhecido também poderia ter sido refletida, por exemplo, na reação de Ana com o repentino ganido de Thor. Ou, ainda, mais tempo antes de Ana finalmente decidir colocar o bebê na cadeirinha e pegar uma faca na cozinha. Outra ideia, se estiver de acordo com o futuro do projeto, é apresentar rastros de sangue em direção ao milharal quando Ana sai de sua casa à procura de Carlos”.
De qualquer forma, “'Ocultos', segundo Perlungieri, é “um projeto maduro, que usa bem o silêncio, construindo uma atmosfera tensa e escolhendo, com sabedoria, as informações que irá ceder aos espectadores”.
Falando em elementos atmosféricos que dialogam com questões do imaginário popular, Ian também comenta “Sara”, roteiro de Barbara Balian.
“Nas cinco primeiras páginas de Sara, de Barbara Balian, conhecemos Sara, uma freira cuja exaustão é palpável, tanto por suas olheiras quanto por suas ações, como o ‘respirar fundo’ e a ‘recuperação do fôlego’, começa Perlugieri, que segue seu comentário:
“Em sua cela, Sara liga um rock em seu aparelho de som e dança sozinha até se lembrar de algo. Essa repentina lembrança, no entanto, pode soar artificial. Por que ela se lembraria de algo naquele exato momento? Talvez uma ação externa desperte a lembrança nela, como uma palavra da música ou um barulho diferente. De qualquer maneira, Sara se dirige a entrada do convento para trancar uma última porta, mas encontra uma mala por lá. Ao abrir a mala, surpreende-se com um cadáver em seu interior. O susto de Sara é o mesmo que o do espectador, o que é muito bem-vindo. Afinal, as cinco primeiras páginas de Sara são bem eficientes em nos colocar lado a lado com a protagonista. Sugere-se, porém, plantar a ideia do suspense de modo sutil focando, por exemplo, no sangue da imagem de Cristo. Dessa maneira, se cria um prenúncio do que está por vir”.
Ian Perlungieri faz algumas sugestões e reflexões que podem ajudar o roteiro:
“Ademais, talvez possa somar ao projeto o acréscimo de descrições. Ou, ainda, detalhar o tamanho da mala, uma vez que não se trata de uma mala pequena, mas sim grande o suficiente para caber um cadáver em seu interior. Além disso, se no início estamos próximos do rosto de Sara e no fim das cinco páginas é ela quem pega o telefone e roda os números, por que nos separamos de Sara quando ela vai buscar a morfina para a Madre Superiora? Talvez seja interessante estarmos com ela nesse momento também, já que a personagem é o nosso primeiro contato com o projeto e estamos com ela na maior parte do tempo".
Perlungieri reforça que o projeto "acerta ao tridimensionalisar rapidamente a protagonista". Como sempre mencionamos, personagens densas conferem a trama uma potência única. Em "Sara", acompanhamos contradições e tensões muito bem apresentadas para as 5 primeiras páginas.
Não deixe a "regra" limitar a criatividade
Como em qualquer outro tema, há muito mais que poderíamos citar sobre construção de atmosfera. Queremos ampliar esses e tantos outros assuntos em novas entrevistas e artigos para o portal. Dito isso, queremos deixar um recado final sobre o assunto: "regras" são importantes, mas cuidado para não perder "o sabor das palavras".
Um roteiro é escrito para ser filmado - ele não é uma obra final. É por isso que ele precisa atender a algumas regras de formatação e escrita. Independente disso, é preciso mencionar que a "carreira" de um projeto no mercado não costuma ser assim tão curta. Isso significa que muito provavelmente seu roteiro vai passar por diversas mãos e olhares críticos antes de ter qualquer oportunidade de ser gravado.
Essas pessoas precisam se sentir cativadas, convidadas a imaginar seu universo, construir suas cenas com o uso da imaginação. São pessoas que precisam captar o tom da obra apenas através de palavras, que precisam entender o ritmo para saber onde o projeto melhor se encaixa. A atmosfera é muito útil nesse momento. Por isso não basta descrever - é preciso encantar. Por mais "marqueteiro" que isso pareça, acredite - é real. Às vezes vale mais "deslizar um pouco" nas regras de escrita para passar a atmosfera necessária. Não esqueça: escrever roteiro não é uma prova do ENEM. Você nunca vai ver uma pessoa falando: "muito bom o roteiro, mas vi três erros de formatação, então ele tá fora".
Tenha bom senso, mas lembre-se que é o enredo que faz a diferença na hora de um projeto ir para frente ou não.
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