Anatomia narrativa: você realmente sabe ler roteiros?
- Writer's Room 51
- há 22 horas
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Atualizado: há 4 horas
De roteiristas iniciantes a experientes, é possível transformar a leitura de roteiros em uma aula particular com grandes mestres da narrativa. Confira nossas dicas!

Centenas de roteiristas baixam roteiros todos os dias, folheiam algumas páginas e acreditam que estão estudando a arte em toda a sua potência. Porém, apenas ler um roteiro não é o mesmo que saber ler um roteiro.
Quem realmente domina a narrativa audiovisual sabe extrair diversas camadas de conhecimento, como ritmo, escolhas linguísticas, técnicas estruturais e detalhes sutis que farão toda a diferença no seu próprio projeto.
Mas será que ler é realmente diferente de assistir ao filme pronto? Sim – e os dois modos de aprender são igualmente valiosos.
A questão é que, no roteiro, você consegue visualizar como foram impressos ritmo, tom e outros elementos tecnicamente intangíveis. Na página, não existe o auxílio sensorial da atmosfera, somente as palavras e detalhes gráficos escolhidos meticulosamente pelo(a) autor(a).
Quer ajuda para melhorar sua leitura e, consequentemente, sua escrita? Siga conosco.
Onde encontrar roteiros para ler?
Existem vários Drives com roteiros para ler (inclusive no nosso Drive Exclusivo para apoiadores do Catarse). Mas, se você não tiver acesso a eles, existem outras fontes.
Sites como Go Into The Story, The Black List, StudioBinder e o Internet Movie Script Database (IMSDb) oferecem roteiros autênticos. Mas cuidado: alguns sites apresentam "transcrições" que são apenas diálogos do filme finalizado, não o roteiro original.
Quando você abrir um arquivo, certifique-se de que ele tem a formatação adequada e escolha preferencialmente roteiros de produção ou spec scripts.
Para roteiros brasileiros: acervos como o do FRAPA, Além do Roteiro e da Tertúlia Narrativa oferecem roteiros nacionais. Fique conosco até o final para uma lista de recursos para ler roteiros online!
Estrutura e tom: arquiteturas emocionais

Antes de tudo, é interessante você mapear ou entender qual é o gênero principal do filme, além do tema discutido. Esses dois pontos básicos irão ditar convenções, tom e subtextos.
Além disso, para o propósito deste artigo, estaremos apenas trazendo alguns exemplos de roteiros de longas-metragens. Para uma análise de estruturas de roteiros de séries, confira nosso outro post sobre isso.
Sobre estrutura, quando Tarantino abre "Pulp Fiction" com uma cena aparentemente despretensiosa em uma lanchonete, ele não está apenas "começando" o filme — está estabelecendo tom, personagens e plantando sementes narrativas que serão colhidas depois.
A estrutura não te diz o que fazer [...]. A estrutura é um sintoma da relação de um personagem com um argumento dramático central. - John August
Ao analisar estrutura, pergunte-se:
Como o/a roteirista introduz os personagens?
Onde estão os pontos de virada? Podem existir vários. Estão no midpoint, no clímax? Não existem?
Quanto espaço é dedicado a cada ato? Como mencionado antes, sitcoms têm estruturas bem diferentes de longas independentes, por exemplo.
Mais do que analisar, é interessante buscar estratégias que podem funcionar para você. Escolha um ou dois pontos de análise por vez e vá marcando (ou decupando num arquivo separado) as sequências que mais inspiram.
Quando analisamos um roteiro escrito em busca da estrutura, isso força nosso cérebro a ser muito analítico. Isso porque assistir a um filme envolve vários outros estímulos que nos dizem, mesmo que no subtexto, que estamos no início ou no fim de uma sequência.
Um exemplo disso é quando o filme emprega uma música apoteótica para explicitar o clímax. Nas páginas de um roteiro, é você quem precisa saber identificar isso (para melhor saber construir depois).
Além disso, roteiros que fogem um pouco do clássico, como narrativas não-lineares ou fragmentadas, podem ajudar muito sua escrita a encontrar um bom ritmo – ou até mesmo “sair da caixinha".
Ação, descrição, formatação e escolha de palavras
Compare estas duas abordagens descritivas:
De "Cidade de Deus" (2002):

De "Cabeça de Nêgo" (2020):

Ambas possuem indicações diferentes no corpo das ações. Algumas passagens trazem indicações de câmera, outras indicações de escritos num cartaz, montagem paralela, local próximo da cena…
Algumas ações são mais sugeridas (“A perseguição é cheia de peripécias…"), enquanto outras são bem precisas (“Saulo anda até um poste e pára. Olha pros lados. Coloca suas coisas no chão…").
Apesar das diferenças, ambas fazem um ótimo trabalho em descrever o que estamos vendo, ouvindo e lendo em cena.
Outro ponto importante é analisar como que elementos sonoros e escritos aparecem no roteiro. Alguns utilizam caixa alta, outros aspas… Veja o exemplo de "Levante” (2023):

Já cenas em tela dividida com ações e/ou diálogos simultâneos podem se utilizar da formatação para deixar a visualização mais fácil, como no roteiro de “Eduardo e Mônica” (2022):

Outro exemplo mais relacionado à produção é o roteiro poliglota de "A Viagem de Pedro" (2022), onde Laís Bodanzky precisou adotar o formato de duas colunas no documento inteiro ao traduzir os diálogos para outros idiomas:


Agora, quando Coralie Fargeat escreve o roteiro de “A Substância” (2024) dessa forma…

…ela está literalmente imprimindo seu estilo e o ritmo da cena já na formatação.
Portanto, é muito rico observar as liberdades que os artistas se dão ao brincar com palavras e formatação em roteiros de sucesso. Já falamos um pouco sobre isso em outra matéria e falaremos ainda mais adiante.
Ao analisar descrições de ação e também a formatação, note:
Como o espaço em branco, frases únicas ou outro tipo de espaçamento são usados para criar ritmo
Quando o/ roteirista opta por economizar palavras e quando decide ser mais detalhista
De que forma as descrições físicas revelam o estado emocional dos personagens
Como a formatação ajuda ou atrapalha a imersão de quem lê.
Diálogos vão além das palavras
Os diálogos em "A Separação" (2011) são exemplos de obras-primas de tensão contida. Cada personagem revela sua verdade em camadas, através de frases aparentemente simples que carregam o peso de décadas de cultura e convenções sociais iranianas.
Em "Drive My Car" (2022), as conversas no carro entre Kafuku e sua motorista Misaki também são interessantes. As palavras são econômicas, precisas, mas a distância emocional entre dois estranhos gradualmente se transforma através de silêncios calculados e revelações dosadas com precisão cirúrgica.
Já em um filme hipotético de mistério ou suspense, os diálogos iniciais poderiam estar carregados de ambiguidade em relação ao plot ou a algum personagem – algo que o público só descobre no final, com a revelação do real sentido daquelas palavras. Por isso que ler o roteiro ajuda muito a analisar a escolha de palavras e ritmo, ainda mais quando tudo se traduz muito bem para as telas (como os diálogos precisos de Aaron Sorkin ou Noah Baumbach).

Ao analisar diálogos, observe:
Como o subtexto funciona (o que os personagens dizem vs. o que realmente querem) – por exemplo, conversas familiares que escondem conflitos profundos sob a superfície de palavras educadas
De que forma informações de backstory são entregues sem parecerem forçadas
Como o ritmo dos diálogos muda em momentos de tensão ou relaxamento, ou quando personagens de diferentes classes sociais interagem
De que forma as barreiras culturais e religiosas moldam o que pode e não pode ser dito explicitamente, etc. Observe a escolha de palavras.
Em roteiros excepcionais, o poder está no não-dito e no que é dito apenas na hora certa. Sobre esse último caso, lembra dessa cena de “Orgulho e Preconceito” (2005)?

Falando em filmes de época, todos sabemos que os diálogos de cada período histórico estão relacionados a esse elementos, mas também à localidade e vários outros fatores.
Pegue o exemplo do roteiro de “A Bruxa" (2015): o roteirista e diretor Robert Eggers escolheu empregar a forma de se falar daquela época, sem adaptações. Esse foi, inclusive, um ponto reportadamente polêmico na venda do filme.

Contudo, o tipo de produção, gênero e linguagem do filme possibilitou que essa escolha perdurasse até o filme pronto. Vale ressaltar que se basear numa boa pesquisa é indiscutível. Leia mais sobre diálogos aqui e aqui.
Liberdades e estilos
Outro ponto extremamente interessante – e, talvez, o mais divertido – é analisar as liberdades que os(as) artistas tomam na hora de escrever.
Já mencionamos “A Substância” anteriormente. Mas observe mais uma vez a forma como os grafismos auxiliam na imersão e construção do universo:

Observe, a seguir, o ritmo impresso no roteiro de "Whiplash: Em Busca da Perfeição" (2014). Nem precisa entender inglês para perceber que os números e pontos estão construindo ações, ritmos, transições e tensão:

Ou, então, a mistura única e específica de visuais em “Anatomia de uma Queda” (2023):


Por último, observe o recurso que Greta Gerwig emprega no roteiro de “Adoráveis Mulheres” (2019): ela utiliza cores para temporalidades diferentes. Vermelho para o passado, preto para o presente.


Assistir a um filme é extremamente edificante, mas lê-lo pode ser libertador para roteiristas. Assim, você conhece novos jeitos de traduzir suas ideias para a página.
Técnicas Avançadas de Análise
Ok, você estudou alguns pontos básicos do roteiro, mas agora quer decupar elementos de maneira mais profunda? Tente essas práticas a seguir.
Mapeamento de estruturas emocionais
Existem mil maneiras de estruturar um filme. Geralmente, em cursos, aprendemos algumas delas através de uma mistura entre teoria e análises. Como encontrar a melhor estrutura para o seu filme usando a decupagem de roteiros prontos?
Uma técnica que empregamos aqui no WR51 é o "Mapeamento Inverso de Emoções", derivada de diversas discussões e teorias sobre as emoções narrativas. Acreditamos que devemos mapear não apenas acontecimentos, mas as reações emocionais que cada cena provoca no público e também no personagem. Este método envolve:
Identificar a emoção primária que cada cena desperta em você ou no personagem (tensão, alívio, esperança, medo)
Marcar a "temperatura emocional" numa escala (pode ser de 1-10)
Visualizar esse fluxo emocional em um gráfico ou grafismo
Perceber padrões de oscilação emocional que mantêm o público engajado ou a personagem evoluindo/mudando
Dica: Use post-it coloridos (físicos ou digitais) para visualizar a estrutura emocional do roteiro que você escolheu. Use uma cor para cada ato, arco de personagem ou linha narrativa.
Disponibilizamos algumas análises estruturais para nossos apoiadores do Catarse. Considere apoiar para ter acesso!
Análise comparativa
Poucos exercícios são tão valiosos quanto comparar elementos entre dois roteiros semelhantes (seja gênero, estrutura, temática, etc). Procure comparar:
Diferentes versões do mesmo roteiro (quando disponíveis)
O roteiro original X o filme finalizado
Como diferentes roteiristas abordam cenas ou sequências similares em filmes diferentes
Pode até mesmo ir além e comparar passagens, diálogos e/ou sequências entre um romance/conto e o roteiro adaptado
Por exemplo, as diferenças entre "Amour" (Michael Haneke) e "The Father" (Florian Zeller) revelam abordagens radicalmente diferentes para explorar o envelhecimento e a fragilidade humana.
Haneke constrói longas sequências com diálogos mínimos, permitindo que a câmera capture a deterioração física com precisão clínica. Já Zeller manipula a narrativa e o ponto de vista para que o espectador experimente diretamente a confusão mental do protagonista. Isso reflete tanto na linguagem quanto na estrutura do filme, que propõe "apagões" narrativos intra e extra-diegéticos.

Outro exemplo: compare como Céline Sciamma em "Retrato de uma Jovem em Chamas" (2019) utiliza longos silêncios e olhares como substitutos de diálogo explícito, enquanto Joachim Trier e Eskil Vogt empregam em "A Pior Pessoa do Mundo" (2021) monólogos internos e diálogos rápidos e espirituosos para explorar temas semelhantes de autodescoberta e relacionamentos.
Os dois partem do mesmo gênero (romance), mas o constroem em ambientações diferentes, com linguagem e abordagens diferentes. Confira uma masterclass (em inglês) com Sciamma e entenda melhor seu processo único de criação.
Apesar de parecerem óbvias, estas escolhas narrativas são decisões estratégicas dos artísticas que revelam tanto sobre a sensibilidade do roteirista quanto sobre as expectativas culturais de seu público-alvo.

Além disso, ao se ler um roteiro, estamos analisando também a escolha e articulação temática daquele artista. Uma técnica pouco explorada é o "Rastreamento de Motifs Visuais e Verbais", destacados por autores como Robert McKee (Story) e John Truby (Anatomia da história).
Geralmente, esses símbolos são bem aparentes no início dos filmes como elementos de mistério, caracterização, desejo, etc. Tente:
Identificar objetos, frases ou gestos recorrentes no roteiro
Mapear sua progressão, transformação e seus payoffs ao longo da narrativa
Analisar como esses motifs reforçam e traduzem os temas centrais
Por exemplo, o roteiro de "Birdman" (2014) utiliza não apenas o motif visual óbvio do pássaro, mas também repetições sutis de diálogos sobre "relevância" e "verdade" que evoluem conforme a sanidade do protagonista se deteriora.
Essas repetições não são coincidências, mas ferramentas deliberadas para reforçar temas.
Exercício: encontre seu sistema pessoal

Uma das melhores ferramentas que podemos ter ao nosso dispor como roteiristas são nossos próprios recursos criativos. Estruturas, beat sheets ou plot points que julgamos "necessários", por exemplo, podem ajudar a estruturar nossas histórias e imprimir nosso estilo nelas.
Dica de exercício: Escolha uma cena de um roteiro que admira. Reescreva-a mantendo todos os elementos narrativos, mas usando seu próprio estilo.
Este exercício pode ajudar a encontrar sua voz enquanto respeita as necessidades estruturais da história. Mais dicas para criar seu sistema:
Desenvolva uma checklist personalizada para análise de roteiros (estrutura, personagens, diálogos, subtexto, etc.)
Mantenha um "diário de roteiros" onde anota técnicas interessantes que encontra.
Conclusão

Além de tudo isso que falamos aqui, é claro que existem milhares de outros elementos do roteiro que você pode e deve prestar atenção, como apresentação de personagens, transcrições de músicas, sequências de montagem, etc.
Ainda assim, já deu para perceber como ler um roteiro profissionalmente não precisa ser apenas um processo passivo. A diferença está na intenção e na metodologia.
Boa leitura e boa escrita!
Referências e recursos
MasterClass - "How to Read a Script Like a Professional Script Reader."
ScreenCraft - "What Professional Script Readers Are Looking For."
Script Apart Podcast
Scriptnotes Podcast
Go Into The Story
Film Courage (YouTube)
Leia roteiros de cinema e TV online:
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