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Desafio das 5 Páginas: a questão do som e ritmo

Na primeira edição de nossa análise do Desafio, trazemos possibilidades de como trabalhar som e ritmo na narrativa e na própria escrita do roteiro

"Her Smell". Imagem: JustWatch
"Her Smell". Imagem: JustWatch

Graças aos recursos audiovisuais, um filme ou mesmo série televisiva trabalha muito mais do que a imagem para conduzir o espectador pelo seu universo ficcional. É preciso trabalhar o som de forma narrativa e atmosférica, ainda mais em projetos que utilizam a música como fio condutor.


Pensando nisso, é possível trabalhar a música e o ritmo no roteiro de modo narrativo, mas também sensorial? Esse é o tema do nosso primeiro conteúdo a partir do Desafio das 5 Páginas, onde selecionamos as 5 primeiras páginas de alguns roteiros dos nossos seguidores para conferir miniconsultorias e também construir discussões úteis para a nossa comunidade.


O primeiro vídeo em parceria com a roteirista e youtuber Carol Santoian já saiu e, nele, ela comenta sobre algumas questões que vamos abordar nesta matéria também. Assista:

Vale lembrar que o Desafio não é um concurso - ou seja, não escolhemos os melhores roteiros para analisar. Nosso intuito é discutir alguns pontos interessantes de apresentação, ritmo e abordagem narrativa. Além disso, também é preciso ressaltar outro ponto: nenhum roteiro enviado “vai fora”. Pelo contrário - seguimos nossas miniconsultorias mensalmente, a fim de ler o maior número de roteiros possível.


Para tratar de ritmo e música no roteiro, nos baseamos em três projetos: "Eva", longa de Guilherme Petry, "Corpos", piloto de série de Ricardo Santos, e "6 Músicas", longa de Pryka Almeida. Confira!


A música e o ritmo no roteiro

"Whiplash". Imagem: IndieWire
"Whiplash". Imagem: IndieWire

Quando desenvolvemos um roteiro que trabalha a música como ponto central, os elementos sonoros não podem surgir apenas como indicações. É preciso que o ritmo e a música influenciem a escrita, como no exemplo extraído aqui do roteiro de "Whiplash: Em Busca da Perfeição(Whiplash, 2014):

Whiplash
"Whiplash"

Tradução livre:


INT. SALA DE ENSAIO DE ANDREW - ALGUMAS HORAS DEPOIS


Andrew pratica como um louco, tentando acertar um golpe duplo. À sua esquerda, um METRÔNOMO digital pisca. O tempo definido: 380. Andrew para. Reinicia o metrônomo. 390. Volta a tocar. Tenta acompanhar. Redefine o metrônomo para 400. Não consegue acompanhar de jeito algum agora. Lutando, suando, bolhas nas mãos, quando--


CRAAACK. A baqueta direita de Andrew PARTE na metade.


Ele para. Exausto. Olha para a mão, suando e latejando das bolhas.


Olha para o metrônomo. Ainda apitando. Ele desliga.



O roteiro de Whiplash nos coloca no centro da tensão, entre uma batida e outra, utilizando a descrição como a própria percussão que pontua as cenas de ensaio. A emoção do personagem transborda para nós o tempo todo.


Dito isso, vamos analisar rapidamente essa questão nas primeiras páginas do roteiro "Eva", pela perspectiva de Carol Santoian:

A cena de abertura constrói bem o ritmo: somos embalados por mãos que tocam Jazz em um trompete. A princípio, não vemos seu rosto por completo, apenas seus olhos imersos na música que toca. Depois, temos uma visão mais ampla e entendemos o contexto: estamos no Festival de Música no Parque, cuja modesta estrutura se contrasta com a enérgica banda que se apresenta no palco. Nosso olhar se volta para a trompetista e, então, conhecemos seu nome: Eva, uma jovem de vinte anos, cujo som produzido por ela “modifica todo o ambiente”. A música e a apresentação da personagem caminham juntas, de forma progressiva. O ritmo segue até o clímax, momento de maior destaque para a protagonista. As cinco primeiras páginas nos apresentam bem a protagonista, seu mundo e as personagens que a rodeiam. A leitura é prazerosa e ficamos com a curiosidade de saber mais sobre Eva.

Ainda na primeira página, Guilherme Petry trabalhou os elementos rítmicos próprios do Jazz para destacar sua protagonista, como o próprio roteiro de Whiplash o faz. Vamos observar o trecho a seguir:

Trecho de "Eva", de Guilherme Petry.
Trecho de "Eva", de Guilherme Petry.

Entramos no universo ficcional pela direção implícita que Petry construiu. O som é o primeiro elemento a ser mencionado - logo, ele ganha um destaque inicial. Olhos se fecham, o timbre do sopro do trompete. A potência do instrumento, bochechas pulsando. É como se respirássemos junto com Eva, mesmo antes de conhecermos suas características físicas. Estamos colados na personagem e experienciamos a música de dentro para fora e não de fora para dentro.


Petry poderia muito bem começar seu roteiro de outra forma. Uma descrição do ambiente, uma sugestão breve de que há uma banda e um pequeno destaque para a trompetista no final, deixando claro o seu protagonismo. Uma opção assim excluiria a potência musical que pode e deve influenciar a escrita e ditar o tom do roteiro.


Além de apresentar personagens, indicativos musicais no roteiro ajudam na hora de pontuar passagens e conferir emoção às ações. Segue outro exemplo explosivo de Whiplash:

Tradução livre:


FLETCHER

De volta para a caixa...


Andrew considera isso. É uma boa ideia. Ele volta para a caixa...


FLETCHER (CONT.)

Lento...

(Andrew faz como sugerido)

Single-stroke...


Andrew acena com a cabeça novamente ... Lentamente acalma a batida ... Deixa seu chimbal aberto por um momento ... Tudo fica quieto ...


Silêncio por um segundo... Você pode sentir o silêncio, o antecipação, aquela eletricidade indescritível no ar ...


Fletcher olha para Andrew, olha para suas baquetas, rosto transbordando com esperança agora ... Andrew começa uma série de snares lentos e limpos... golpe direito, golpe esquerdo, direito, esquerdo …


FLETCHER (CONT)

Mais rápido, mais rápido…


Andrew acena com a cabeça... Gradualmente aumenta o ritmo... Direita, esquerda, direita, esquerda ... Aumenta o ritmo um pouco mais ... Direita, esquerda, direita, esquerda ... Continua ... Acelera mais, um fio de cabelo de cada vez ... Direita, esquerda ... Acelera mais... Direita, esquerda…


Fletcher está lá, balançando a cabeça, focado, como um treinador num momento crítico. Acena com a mão, encorajando Andrew...


Andrew constrói mais o ritmo, direita, esquerda, direita, esquerda, os traços borrando uns nos outros, a coisa toda soando como o fogo de uma metralhadora, como o que ouvimos no

começo ... Direita-esquerda-direita-esquerda-direita-esquerda ...


E, antes que saibamos, não podemos mais distinguir as batidas individuais. Elas são tão rápidas que tudo o que podemos ouvir é um SOM único, sustentado e crescendo em volume…


FLETCHER (CONT.)

Vamos! Vamos…


Andrew, instigado, aumenta o volume. Seu single-stroke cresce, tomando conta de todo o teatro ...

FLETCHER (CONT)

Vamos...!! Vamos!!!


Andrew cresce o som ainda mais... Indo além do que ele mesmo planejou para si mesmo - seus braços como máquinas, o single-stroke roll criando força e força e fixando o público em seus assentos... Fletcher erguendo as mãos, encorajando Andrew... Ele e o baterista trabalhando juntos, músico e maestro, competidor e treinador…


Andrew vai para os tom-toms, depois volta para a caixa e depois retorna. O bumbo e o chimbal em seguida, todas as partes do set se juntando, cada membro, cada componente, tudo se acumulando, subindo, subindo...


É diferente de tudo que já vimos... Andrew abrindo um buraco através do palco, seu batimento cardíaco acelerado, o suor escorrendo dele como uma cachoeira, sangue jorrando de suas mãos e manchando os pratos e as cabeças dos tambores... Tudo um BORRÃO…


Então - UMA EXPLOSÃO DE ACESSOS SEPARADOS DE CAIXAS - e então - Andrew BLOQUEIA o prato de impacto. Um segundo de puro silêncio.


Fletcher olha para Andrew. Andrew olha para Fletcher. E depois -- Fletcher se vira para a banda, levanta a mão ...


... e SINALIZA A NOTA FINAL.


Toda a banda explode, buzinas atingindo seus Dós mais altos, e Andrew atacando sua bateria como um louco, címbalos e laços e toms e todo o aparato prestes a estourar, ao passo que MERGULHAMOS PERTO DELE, seu instrumento, suas baquetas, seu rosto, todo suor e olhos prestes a estourar, o próximo Buddy Rich, o próximo Charlie Parker - o único Charlie Parker de Fletcher - enfeitando o palco com um estrondo clímax de pratos bem como, naquele último hit de hits, nós-


SMASH CUT PARA O PRETO

FIM



Aqui, a linguagem musical extrapola as especificidades e constrói um real clímax narrativo. Nessa sequência, o ritmo e os instrumentos dão tom à expectativa e tensão de cada personagem.


Vamos comparar esses elementos à apresentação da personagem Heloísa no roteiro “6 Músicas”, de Pryka Almeida. Sobre o assunto, Carol Santoian pontua:

A primeira cena do roteiro mostra Heloísa em um estúdio tocando guitarra. Ela toca bem, possui estilo próprio e é incentivada por suas parceiras de banda e pelo técnico de som. A música, apesar de agradar todos os ouvintes em cena, poderia ser mais desenvolvida em termos de escrita. As falas “Uow! O que foi isso?” ou “a música estava tão boa que eu esperei terminar” parecem forçosamente contar uma qualidade musical de Heloísa que o roteiro não consegue mostrar. Nesse sentido, alguns diálogos podem ser cortados (ou enxugados), dando mais espaço para o desenvolvimento da música.

“6 Músicas” trabalha um universo musical underground rico em referências e muito pouco explorado no audiovisual brasileiro. E é justamente por isso que o roteiro pode muito bem construir elementos imersivos mais poderosos, fazendo com que o leitor adentre verdadeiramente o universo proposto.


Da forma como foi construído o roteiro, nós somos convidados a confiar na opinião do técnico de som e demais ouvintes a respeito da qualidade musical de Heloísa. O que, no fim, nos deixa ainda mais curiosos para compreender o que há de particular em sua música. O desafio aqui é, através de linhas de ação e ritmo, fazer o próprio leitor sentir o talento de Heloísa e, ao mesmo tempo, entender suas idiossincrasias.


Confira um trecho do roteiro:

Trecho de "6 Músicas", de Pryka Almeida.
Trecho de "6 Músicas", de Pryka Almeida.

Observando a descrição da autora, adquirimos algumas informações cruciais para compreender nossa protagonista, mas tais indicações ainda podem melhorar em tom. A própria apresentação da “Música 1” soa um tanto genérica, começando pelo nome. Vale tomar um tempo maior para entendermos melhor que música é essa, mas também sua relação com ela.


Qual o estado emocional de Heloísa e o que ela sente ao tocar essa música? Por que Heloísa está sendo apresentada para nós através dessa cena? Ela toca seu instrumento de forma metódica, pois não é isso que ela quer da vida? Ou é o único momento em que ela encontra paz, serenidade e entende que tudo faz sentido de fato?


Um primeiro passo para “colorir” melhor esse trecho de apresentação é justamente refletir sobre o significado da cena para o arco e a relação que a autora busca criar entre o público e a protagonista.

"Her Smell". Imagem: reprodução
"Her Smell". Imagem: reprodução

Um exemplo de união emocional e potente entre uma personagem e a música que toca pode ser apontado no roteiro do filme "Her Smell" (2019). Aqui, a protagonista Becky está em crise o filme todo, finalmente alcançando um momento de ternura com sua filha Tama ao tocar "Heaven" no piano, somente para ela. Leia esse trecho:

"Her Smell"
"Her Smell"

O roteirista nos informa, de maneira poética, mas clara, qual o tom da cena e da performance que ele imagina. Essa é uma liberdade interessante e necessária de se tomar. Confira a tradução livre do trecho comentado:


E, só por este momento, é uma pena que Becky tenha um público de apenas uma pessoa, porque o que ela está prestes a entregar é a mais dolorosamente bela e profunda performance, talvez de sua vida inteira. E se ela fosse tocar isso para uma audiência de 10.000, não haveria um olho seco no local.


É profundo, terno, emocional. De um lugar dela mesma onde mora o amor puro. O amor tão profundo que era protegido de todas as drogas, dor e miséria que ela causou a si mesma e aos outros. Está mais perto de um hino sacro, preenchendo uma igreja com tons de devaneio e significado espiritual e a razão pela qual ela reúne tudo isso é porque é tudo por Tama.


Uma das melhores canções já escritas: HEAVEN de Bryan Adams.



Deu para entender e sentir muito bem a relação entre tudo: emoção, narrativa, arco da personagem. Portanto, na hora de introduzir uma música, pense nessa descrição visceral em relação ao personagem. Isso transparece pelas páginas e contamina o leitor.


O ritmo e o som como criadores de tensão

"Um Lugar Silencioso". Imagem: The NY Times
"Um Lugar Silencioso". Imagem: The NY Times

O som e o ritmo do roteiro também são importantes para outras questões. Quando não são o ponto central da narrativa, essas ferramentas estão aí para construírem certa tensão, transições e quebras de expectativa, por exemplo.


Nosso parceiro roteirista Ian Perlungieri trouxe esse exemplo a partir do roteiro do piloto de "Corpos", de de Ricardo Santos. Confira parte de sua análise:

Nas cinco primeiras páginas de 'Corpos', de Ricardo Santos, entramos em contato com a tranquilidade de um domingo calmo e ensolarado em um parque. A jovem Carla corre entre adultos até chegar na barraca onde estão seus pais. Sua irmã, Luiza, quer ir na Trilha do Silêncio, mas a mãe, Rosa, não quer deixar. Carla se oferece para acompanhar a irmã e, influenciada pelo pai, José, Rosa permite. Na Trilha do Silêncio, não demora muito para Luiza mudar de ideia e querer voltar. Sugere-se, porém, uma exploração maior das irmãs na trilha até a mudança de ideia de Luiza. A tensão em razão do silêncio e do isolamento são bem estabelecidos, mas podem crescer exponencialmente ao aprofundar a descrição da caminhada delas.

Nesse sentido, foi apontada a questão do silêncio: é muito importante saber utilizar as pausas e espaços para capturar a atenção do leitor e construir o ambiente. Veja um exemplo de como essa presença do silêncio (e quebra dele) aparece no roteiro de "Corpos":

Trecho de "Corpos", de Ricardo Santos.
Trecho de "Corpos", de Ricardo Santos.

Aqui, a paisagem sonora foi construída para criar a atmosfera do local e transmitir emoções. De forma narrativa, o autor indica o design de som e, assim, traz uma sensação de que habitamos o local junto das personagens. Por que não explorar tudo isso de forma mais alongada? Será que isso não pode criar ainda mais expectativas no público?


Sobre isso, Ian Perlungieri oferece:

Outros exemplos que podem aumentar a tensão são sons de galhos se partindo não muito distantes das duas ou encontrarem um animal morto, o que legitima a presença de uma ameaça. Dito isso, o projeto introduz a apreensão, mas pode explorá-la mais antes do susto das duas com a legião de macacos-prego e o repentino desaparecimento de Luiza.

E isso deve aparecer no ritmo de leitura. Esse é o xis da questão que vai prender o leitor em tempo real. Quer um exemplo? Confira a quebra de estrutura feita de maneira consciente em "Um Lugar Silencioso" (2018):

"Um Lugar Silencioso"
"Um Lugar Silencioso"

Tradução livre:


INT. CASA DE FAZENDA, SALA DE JANTAR - NOITE


A borda do sol se põe do lado de fora, lançando um brilho laranja sobre a mesa de jantar.


A família termina o jantar. Mia limpa a mesa.


John desdobra um tabuleiro de jogo MONOPOLY quando April finalmente se junta a eles. Ela se senta mais longe de John.


O humor de April muda enquanto ela briga com Will para ver quem rola os dados primeiro.


Eles jogam o jogo principalmente com gestos manuais, nunca falando uma palavra. Eles rolam os DADOS em um cobertor macio para que não faz barulho.


Will está a cinco vagas de pousar no TABULEIRO de April. Ele ora silenciosamente por um milagre.


Will rola um... cinco.


Ele levanta as mãos em protesto.


April solta um RISO. O primeiro som que ouvimos nesse tempo todo --


OS OLHOS DE JOHN SE ARREGALAM. APRIL COBRE SUA BOCA.


TODOS FICAM MORTALMENTE SILENCIOSOS. ASSUSTADOS.


E ENTÃO OUVIMOS.


UM GRITO À DISTÂNCIA. NÃO É HUMANO.


A família troca olhares preocupados.


John vai até a janela, observando o horizonte para qualquer sinal de movimento. Nada.


ENTÃO O GRITO LENTAMENTE COMEÇA A SE AFASTAR.



Nesse trecho, o ritmo quebra nossa expectativa de estrutura e está bem claro na diagramação da página. Recursos de pontuação podem e devem ser bem exploradas no roteiro para esse fim.


Confira outro trecho de "Corpos", logo após a sequência anterior:

Trecho de "Corpos", de Ricardo Santos.
Trecho de "Corpos", de Ricardo Santos.

Aqui, Ricardo Santos também utilizou o som como um elemento de transição. Essa simples ferramenta causa uma ideia de troca de temporalidade, um detalhe econômico e que externaliza bem a relação entre uma personagem e sua memória.



Viu quantas possibilidade existem de trabalhar a música, os sons, o silêncio e o ritmo no seu roteiro? Nossas análises do Desafio irão continuar em nosso portal e no canal da Carol Santoian. Fique de olho!

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