É papel do roteirista sugerir músicas no roteiro? Como trabalhar indicações musicais para potencializar ações e conferir ritmo?
No embalo do nosso Desafio das 5 páginas, reunimos e adaptamos alguns textos do The Script Lab para entender melhor o papel da música no roteiro.
Afinal, quando a música está no centro da trama, como indicá-la apropriadamente no roteiro? Vale sugerir músicas famosas, mesmo sem os direitos sobre elas, ou é melhor deixar para lá?
Outra ligação fundamental entre esses dois elementos é que a música acaba embalando muitos processos criativos por aí. Já percebeu que sua mente fica bem ativa quando escuta determinadas melodias? Esse fato é comum e inspira diretores como Tarantino e Edgar Wright.
Contudo, é importante ter certo cuidado nisso também. Como melhor utilizar essa ferramenta para ajudar na escrita e não se tornar um ruído?
Junto das dicas, trazemos exemplos do roteiro de "Em Ritmo de Fuga" (Baby Driver, 2017) para entender melhor esses e outros pontos. Acompanhe e leia o roteiro na íntegra ao final da matéria!
O valor da música no roteiro
Ao escrever um roteiro, é muito importante visualizar as cenas propostas. Parece um exercício simples e óbvio, mas deve sempre ser pontuado. Não basta pensar as ações, é preciso também imaginar a composição sonora e musical que acompanhará a trama.
Quando a música se propõe a capturar o tom da cena, justamente para acentuar a carga dramática ali proposta pelo roteiro, naturalmente a mesma será desenvolvida a partir do olhar do diretor e da equipe responsável pela trilha musical.
Em outros casos, a música não se resume ao tom, mas atende a princípios essencialmente narrativos. Aí, cabe ao roteirista dar essa primeira deixa.
Uma música pode levar a uma memória e transformar completamente a cena de um filme, como em “Antes do Pôr-do-Sol” (Before Sunset, 2004). Além disso, ainda é possível apresentar uma música conhecida, mas quebrar nossas expectativas e perspectivas diante dela, como acontece em “Laranja Mecânica” (A Clockwork Orange, 1971).
Por isso, antes de sair sugerindo música sem muito critério, é necessário primeiro pensar o papel narrativo daquela música para a sua trama. Esse papel, vale ressaltar, não precisa necessariamente levar a trama adiante como qualquer outra ferramenta narrativa. A escolha e sugestão da música “certa” pode conferir densidade à trama e até mesmo revelar detalhes importantes sobre as personagens.
Em resumo: se você for colocar uma música em seu roteiro, saiba que ela precisa realçar os elementos dramáticos que já fazem parte desse universo. A ponto, inclusive, do público criar uma relação direta entre a música e a cena proposta.
Como disse o roteirista e diretor Quentin Tarantino: “quando você faz da maneira certa, o efeito é que você nunca mais conseguirá ouvir a música sem se lembrar das imagens do filme”.
A partir daqui, trazemos reflexões e dicas traduzidas e adaptadas desse texto do The Script Lab.
É certo o roteirista indicar música no roteiro?
O conhecimento "convencional" indica que não. Esse mesmo conhecimento aponta que não devemos “dirigir no roteiro” ou mesmo indicar em rubricas o que as personagens estão sentindo. Nós discordamos.
George Lucas escreveu "Loucuras de Verão" (American Graffiti, 1973) todo em volta de indicações de trilha musical. Tarantino frequentemente coloca indicações musicais em seus roteiros. Entendemos que ambos são diretores, mas e daí? Apenas diretores podem escrever roteiros detalhados com muitas “cores e personalidade”?
Nós diríamos que roteiristas, ainda mais fazendo um spec*, precisam ainda mais dessas cores e personalidade.
Por exemplo, diretores têm seu storyboard e esboçam todo o filme ali antes da gravação e montagem. Nele, todo o tipo de elemento narrativo é sugerido, com o intuito de visualizar melhor o filme pronto.
Por isso, não pense em seu roteiro como um projeto simplesmente transmitindo diálogo e ação básica. A menos que você tenha um dos melhores conceitos de todos os tempos, seu roteiro será entediante de ler se não houver personalidade na escrita. E, se for entediante de ler, será difícil de vender.
Sua tarefa não é apenas entreter através das páginas, mas fazer com que os leitores realmente imaginem o filme. Portanto, a música entra aí como um elemento fortíssimo de criação, ou pelo menos um apoio narrativo especial que traz aquele tom diferente.
*Spec é um roteiro de autoria própria do roteirista criado a partir de uma série de TV já existente. É uma ferramenta de venda e contratação do roteirista muito utilizada nos EUA.
Só indique a música se for realmente algo fundamental
Quando Edgar Wright enviou o roteiro de Baby Driver aos atores, ele incluiu um pen drive com as músicas anexadas. O autor também falou sobre como incluiria links para músicas no roteiro, para que fosse possível ouvir um MP3 da música na própria página, durante a leitura.
Esse tipo de atenção aos detalhes seria um exagero para um roteiro "comum", mas é um indicativo da maneira como Wright fez da música uma parte essencial de cada cena em Baby Driver, virtualmente inseparável de qualquer outra coisa na página.
Isso é diferente de escrever uma música que ajuda a estabelecer o tom, mas não é necessariamente a música que deveria estar no filme. Em outras palavras, se houver uma série de músicas que possam funcionar no lugar da que você escolheu, apenas indique o estilo específico, mas não a música em si.
Existem razões mais práticas para discernir sobre como você usa a música em sua escrita também. Por exemplo, se você está escrevendo um roteiro que acredita que poderia realmente ser feito algum dia, você, como roteirista, provavelmente não terá a palavra final sobre que música vai para o filme (se você atingir certo renome, como o roteirista/diretor Edgar Wright, pode ficar à vontade para ignorar esse conselho, mas vale a pena considerar).
Além disso, se você escrever uma música famosa em seu roteiro por razões quaisquer (e não por uma necessidade real), isso apenas torna mais fácil para um artista aumentar bastante a taxa de licenciamento, quase garantindo que o filme excederá seu orçamento musical.
Considere como a música irá complementar a história
Em nosso último post, trazemos essa discussão como foco central. O motivo é pelo profundo efeito que a música pode trazer para o roteiro: enriquecê-lo ou deixar tudo meio entediante.
Por exemplo, Wright falou sobre a importância da música "Bellbottoms", de The Jon Spencer Blues Explosion, para Baby Driver anos atrás, apontando como o conceito do filme surgiu da ideia de que “talvez um motorista de fuga esteja ouvindo essa música e, na verdade, esteja tentando cronometrar suas fugas e literalmente ter a ação perfeita durante a batida perfeita.”
Com a invenção do iPod, Wright percebeu que fazer um filme inteiramente com música diegética era muito possível. Mas, como nenhuma música neste filme seria apenas ruído de fundo, cada música tinha que adicionar algo à cena de uma maneira específica.
“Quando escrevi esse roteiro, basicamente coloquei as batidas da música na direção do set, junto com a ação dos atores”, diz Wright. “Fizemos storyboards e depois montamos esses storyboards com as músicas para que pudéssemos tentar cronometrar e ter certeza de que funcionava”.
Como a maioria dos espectadores certamente notou, ações, armas e explosões estão literalmente acontecendo nas mesmas batidas das melodias durante o filme. Confira um exemplo:
Tradução livre:
INT. CARRO - CONTÍNUO
O play é pressionado em um iPod Classic. Uma faixa de rock começa.
É muito alta. É incrível.
‘Bellbottoms’, de The Jon Spencer Blues Explosion.
Em cordas altas e um 'facad de guitarra, vemos o motorista.
Jovem, com cara de bebê. Cabelo cortado curto. Ele se veste principalmente de preto.
Óculos escuros esportivos baratos de posto de gasolina. Este é BABY.
Não podemos ver seus olhos, mas sua expressão vazia parece estóica. Ele escuta a música, olha pelo para-brisa.
Em uma segunda 'facada' de guitarra, vemos um cara robusto (30 anos) de espingarda.
Este é GRIFF. Ele também usa óculos escuros, roupas pretas de empresário.
Em uma terceira 'facada' de guitarra, vemos outro cavalheiro vestido de preto. (40 anos) Ele é bonito, mas parece que vai à festas demais. Este é BUDDY.
Em uma 'facada' final, vemos a última passageira também usando óculos escuros, uma senhorita mais jovem (20 anos) com o cabelo preso. É DARLING. Há uma pitada de brega sob suas roupas executivas. O crescendo das cordas altas. Griff escancara a porta.
INT./EXT. CAR / ESTACIONAMENTO - CONTÍNUO
A música começa. Vemos que o carro é um Honda Civic vermelho brilhante e notamos que o abrir das portas está sincronizado com a música.
Cordas agitadas tocam contra riffs de guitarra enquanto GRIFF sai. Vemos uma espingarda parcialmente escondida em seu sobretudo.
BUDDY e DARLING também saem. Vemos que também estão armados. Ele abre o porta-malas. Pega duas mochilas. Dá uma para Darling.
Vemos que todos eles usam tênis enquanto se afastam do carro em sincronia com a música. Novamente. É incrível. Mas ficamos com-
O diretor John Woo frequentemente comparou filmes de ação a musicais (dizem que seu filme favorito é "Cantando na Chuva"). Nesse sentido, quando falamos de ação, vale a pena pensar nela não apenas no contexto de balas e perseguições de carro, mas em qualquer cena onde um personagem esteja ativo.
Considere as cenas em Baby Driver em que Baby toma café, conhece Debora, ou o momento em que ele ouve alegremente a “Easy” do The Commodores (uma música que não estava originalmente no roteiro). Todas essas cenas são tão essenciais para o filme como qualquer uma das cenas "de ação" mais tradicionais. E todas têm a mesma ênfase na trilha sonora.
O que há em comum é o pensamento que Wright coloca em como cada música complementa a cena. Mas atenção: isso nem sempre significa que uma música deve combinar perfeitamente com o que está acontecendo ou com o que os personagens estão sentindo.
Às vezes, o uso de uma música que provoca discórdia com o que está acontecendo na tela é muito poderoso. Você se lembra do uso de um certo clássico de Gene Kelly em "Laranja Mecânica"? Ou a cena violenta ao som de “Stuck in the Middle with You” em "Cães de Aluguel"?
No cinema, a ferramenta da contraposição é tão interessante quanto na música.
Escolha sua música "de escrever" com cuidado
Citando Tarantino novamente, ele uma vez disse que: “quando eu começo a ter uma ideia, eu vou para minha sala de discos, onde tenho uma grande coleção de vinis. Aí, vou examinar meus discos procurando já a batida do filme, o som do filme. Podem ser outras trilhas sonoras antigas, rock and roll... todos os tipos de coisas. Mas estou tentando encontrar o ritmo e a batida [do filme]”.
Ele continua: “Isso é antes mesmo de eu começar oficialmente [em um roteiro], mas quando já estou realmente começando a pensar seriamente sobre essa ideia ... Mesmo enquanto escrevo algo, se precisar de um pouco de incentivo, apenas coloco para tocar um pouco daquela música e minha inspiração está de volta novamente”.
Tarantino não é o único cineasta que escreve com música. Edgar Wright é outro, como percebemos. Depois da estreia de Baby Driver no SXSW, ele disse: “Quando estou escrevendo, tenho que escrever a música que está tocando. E tem que ser o tipo certo de música. Sempre que estou escrevendo um roteiro, estou compondo a trilha sonora ao ouvir o tipo certo de música.”
O que isso diz para outros roteiristas? Basicamente, que é importante escolher a que som você irá escrever. Se determinada música ajuda a entrar no clima, talvez essa também seja o estilo de música que pertence ao seu roteiro. Afinal, a música que você ouviria ao escrever um faroeste não é necessariamente a mesma que ouviria ao escrever uma comédia.
E, se algo inspira você o suficiente para colocar palavras na página, é provável que também se encaixe na cena que você está escrevendo.
Outra questão para se ter em mente é que, muitas vezes, certas músicas com vocais podem vir a distrair o processo de escrita. Preste atenção a como que sua escrita responde a músicas apenas instrumentais versus cantadas. Isso pode acabar ajudando muito no seu processo!
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