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A personagem no divã, com Jaqueline Vargas

A roteirista de "Sessão de Terapia" e "Malhação" revela como a psicanálise e observação ajudam na construção de personagens complexas e intrigantes

Sessão de Terapia
"Sessão de Terapia". Imagem: Veja

Roteiristas tiram inspiração das coisas mais variadas - medos, tragédias pessoais, família… E uma grande fonte de inspiração são as dificuldades da vida, analisadas sob a abordagem da terapia psicanalítica.


Entre muitos outros, cineastas como Andrei Tarkovsky e David Lynch notavelmente se inspiraram em conceitos psicanalíticos para realizar seus filmes, alguns até junto de uma autoanálise. E quem não se lembra das icônicas sessões de terapia em "Família Soprano"? Ou então, da série de sucesso "Sessão de Terapia"?


Dirigida por Selton Mello, a série escrita pela roteirista Jaqueline Vargas é original da Globoplay, produzida pelo GNT e Moonshot Pictures. As duas primeiras temporadas de "Sessão de Terapia" foram adaptadas do original israelense "BeTipul", de 2005. A partir da terceira temporada, Jaqueline Vargas, Roberto d'Avila e Selton Mello desenvolveram temporadas inéditas. A quarta temporada, início da parceria com a Globoplay, rendeu o título de uma das séries originais mais vistas pelo público.


Para investigar como construir personagens complexas, que lidam com problemas e questões psicológicas mais delicadas, conversamos com a autora, roteirista e psicanalista Jaqueline Vargas sobre sua experiência escrevendo a quinta temporada de "Sessão de Terapia". Confira!


Quem é Jaqueline Vargas

Jaqueline Vargas
Jaqueline Vargas. Imagem: Priscila Prade

Formada em artes cênicas e em educação e reeducação psicomotora, Jaqueline Vargas é conhecida por seu trabalho na novela "Floribella'' (2005) e pela adaptação da série israelense "BeTipul - Sessão de Terapia" para o Brasil, que foi nomeada Melhor Série de Ficção TV Fechada/Ott de 2020 pela Academia Brasileira de Cinema.


Trabalhou no SBT em 2009, na qual foi co-autora da novela "Vende-se um Véu de Noiva''. Em 2015, foi co-autora da décima quinta temporada de "Malhação", 'Malhação: Múltipla Escolha'. Em 2016, foi colaboradora de Renato Modesto na novela "A Terra Prometida" da RecordTV. Foi colaboradora da vigésima quinta temporada de "Malhação", intitulada 'Viva a Diferença'.


Em 2020, Jaqueline criou a série de suspense ficcional "#tdvaificar", lançada em formato de podcast, e tornou-se autora de “Aquela que Não É Mãe”, livro de poesias lançado pela Buzz Editora em 2021.


Construindo a personagem em terapia

Sessão de Terapia
"Sessão de Terapia". Imagem: Notícias da TV

Idealmente, é a personagem quem vai conduzir a trama. Por isso, já trouxemos aqui várias dicas sobre construção de personagens complexas, intrigantes e ainda assim universais.


Para construir personagens que fazem parte de um universo clínico, Jaqueline Vargas afirma que é fundamental ler intensamente e estudar os temas a serem tratados. "Muito vem do que me intriga e do que eu gostaria de entender melhor e, outra parte, vem de observar e escutar demandas de outras pessoas", afirma.


Para abordar pacientes que trazem temas delicados, como traumas e distúrbios, Vargas faz "um leque grande de opções de possíveis pacientes/personagens", sempre partindo da pesquisa - um dos pontos mais importantes quando tratamos de uma abordagem clínica ou especializada. Essa é a maneira mais garantida de fugir dos clichês, estereótipos e até mesmo mentiras sobre condições e doenças.


Mas, afinal, em que pontos a experiência da roteirista como psicanalista auxilia na construção narrativa? Vargas pontua: "É importante, mas não pode ser fundamental e não é". Para ela, "tudo é feito com licença poética e não deixa de ser entretenimento".

"O que quero colocar é que não penso a série como psicanalista ou terapeuta e sim como escritora. Muito do que o personagem traz é subtexto para o roteiro e nem é nomeado na série." - Jaqueline Vargas

The Sopranos
"The Sopranos". Imagem: reprodução

Quando construímos personagens que carregam traumas ou distúrbios, é essencial não esquecermos de que ainda se trata de uma narrativa. Por isso, personagens ainda precisam ter falhas, forças e também completar algum arco narrativo.


Por mais carismático que seja, Tony Soprano ainda possui sérios desvios de caráter, já que se utiliza da violência como meio de atingir objetivos ou, então, falha em cumprir seu papel como pai de família. Ainda assim, entendemos muito de sua personalidade ao revisitarmos sua infância, seus medos e conhecer o jeito como a vida molda suas crenças.


Vale inspirar-se em si mesmo como pessoa quando escrevemos esse tipo de personagem? Para Vargas, "A maneira como todo roteirista escreve sempre deixa transparecer seu sintoma. Penso que tento usar a favor da narrativa". Não é sempre mais rico quando uma narrativa parece 'vivida'? Inspirar-se em seus próprios medos, anseios e experiências pode trazer exatamente esse tipo de característica para a sua história.


"Se algo da minha vivência, do meu trajeto pode enriquecer a dramaturgia eu me aproprio sim. Os cuidados maiores são de sempre ter em mente que estou contando uma história e não estou fazendo escrita terapêutica. Não é sobre a minha falha dramática ou a minha pessoa, é outro universo para o qual empresto experiências pessoais que considero ter eco nas experiências do espectador." - Jaqueline Vargas

Temas delicados: como abordar?

Normal People
"Normal People". Imagem: reprodução

Dentre outros aspectos, a personagem que mais cativa é aquela que traz contradições e características únicas, interessantes. Assim são também as narrativas mais cativantes: universais, mas que trazem aquele "toque" especial e específico.


Muitas vezes, o que nos atrai como roteiristas são temas mais delicados. Em "Família Soprano" (1999), por exemplo, vemos muito da discussão do papel do homem e da mulher na sociedade, ou então dos limites éticos das relações entre analista e paciente. Em "Sessão de Terapia", vemos traumas pesados, dificuldades familiares, transtornos alimentares e outras questões sensíveis de se lidar.


Vargas não se intimida com isso. A depressão pós-parto, por exemplo, é um dos temas importantes que a série trata. Para a roteirista, essa questão sempre a intrigou e ela pôde "presenciar o quão difícil e delicado esse momento pode ser para a mãe e para o bebê".


Através da pesquisa e observação, Vargas constrói a personagem Manu (Letícia Colin), que sempre quis ser mãe, mas teve seu sentimento alterado quando isso se concretizou. Esse tema também é presente em "Precisamos Falar Sobre o Kevin" (2011), por exemplo, onde a protagonista é construída de forma tridimensional e o tema é explorado a partir de alguns ângulos. Essa exploração, inclusive, é outra ferramenta poderosa na hora de abordar temas difíceis. Experimente discuti-los sobre vários pontos de vista!

We Need to Talk About Kevin
"We Need to Talk About Kevin". Imagem: Cinemateca

Agora, se você ainda tem receio, vá pelo lado mais sutil. Que tal colocar a questão no pano de fundo? Em "Sessão de Terapia", Vargas usufruiu dessa abordagem ao tratar da pandemia do COVID-19, por exemplo.


"Decidimos não carregar a mão na pandemia, por ser um tema delicado. Também não sabíamos como o planeta estaria diante da pandemia no momento da estreia da série", conta. "Logo, decidimos optar por um futuro onde a pandemia estivesse mais controlada e a vida começando a voltar a uma certa 'normalidade'. O que não deixa de ser inspiracional e representar um desejo geral".


Na quinta temporada da série, os temas que têm relação com a pandemia são o burnout sentido por Tony (Christian Malheiros), um motoboy que se arrisca pelas ruas e sofre com a pressão de sustentar a família que foi perdendo a renda por conta da pandemia; e o estresse pós-traumático da enfermeira Lídia (Miwa Yanagizawa), que precisa atuar na linha de frente no tratamento de casos de coronavírus mesmo quando está pronta para se aposentar.


Ou seja, pesquisa, reflexão e sutileza são essenciais na hora de tratar de temáticas complicadas, seja em sequências de terapia ou na narrativa em geral.


A experiência de escrita em "Sessão de Terapia"

Sessão de Terapia
"Sessão de Terapia". Imagem: reprodução

Escrever uma série que baseia-se muito em diálogos e personagens potentes é um grande desafio. Como foi a construção dessa parte da história na série de Jaqueline Vargas?


Para ela, os "diálogos parecem ser a parte mais tranquila do processo". Afinal, "Se o personagem é bem construído, é sólido, se o arco foi bem traçado, se passou pelo consultor (nosso consultor é o psicanalista Ricardo Goldenberg), colocar a fala é o resultado de todo um processo", afirma.


"Também procuro selecionar colegas que, pelo menos em algum ponto, tenham a ver com o paciente", adiciona a autora. "E aí eu digo que a mágica acontece, porque o roteirista coloca uma fala para o paciente que eu rebato como terapeuta e é muito bonito ver que aparecem atos falhos, surge uma escolha de palavras que inconscientemente tem a ver com o paciente".


"O grande barato de 'Sessão' em termos de construção de perfil psicológico de personagem é estar sempre aberto para o fato de que o personagem não tem apenas fala e subtexto, ele tem inconsciente". - Jaqueline Vargas

Para além da experiência de lidar com o inconsciente narrativo, “Sessão de Terapia” ainda traz a experiência da adaptação, já que a série original é israelense e de 2005.


Como foi esse processo de adaptação para um cenário brasileiro? Vargas conta que "a da primeira temporada foi muito tranquila porque o original é maravilhoso. E se não se pode fazer melhor, o ideal (em adaptação) é não mexer no que está bom".

BeTipul
"BeTipul". Imagem: Globo

Já que são países diferentes, a roteirista comenta que algumas personagens representavam situações inexistentes no Brasil, requerendo certa mudança.


"A segunda temporada já foi feita com muitas modificações porque existia o desejo de seguir com a série e em Israel ela terminou na segunda temporada", comenta Vargas. "A principal preocupação era a adaptação cultural, apesar de falarmos de temas universais era preciso que o público identificasse os personagens como brasileiros".


E, mesclando dificuldades universais com aspectos do contexto local, "Sessão de Terapia" obtém êxito nisso.


"Gosto muito da série porque ela desmistifica um pouco do que é uma terapia e pode ser um exemplo de que todos nós temos questões, podemos nos aprimorar e ter uma vida mais apaziguada e plena. A saúde mental é saúde e deve ser mais apoiada, precisamos de mais ofertas de Caps e de atendimento para o grande público. Acho que a série fortalece essa ideia." - Jaqueline Vargas

E como é a sala de roteiro de “Sessão de Terapia”? Jaqueline Vargas afirma que é bem diferente de outras experiências que já teve. "Vejo muitas salas que tratam o processo de forma burocrática, exaustiva e muitas vezes desconsiderando o lado artístico do roteirista", afirma.


"Ser a head me possibilita compartilhar a minha concepção de trabalho criativo. Não vejo necessidade de horas infinitas ou de seguir modelos pré existentes de construção de temporada", conta. Isso é importante, pois a roteirista pontua que a série trabalha com pausas e contemplação, revelando que isso também entra no próprio processo de escrita.

Jaqueline Vargas
Jaqueline Vargas. Imagem: Meio e Mensagem

Além disso, Vargas fala muito sobre a troca e colaboração existente entre ela, o diretor Selton Mello e o produtor Roberto d’Avila. Isso ocorre "desde o primeiro momento quando eu apresento o leque de pacientes, até a consideração de elenco e leituras, polimento", conta. "Selton é muito sensível, 'Sessão de Terapia' não seria o que é sem a direção dele e a produção do Roberto d’Avila. Como eles bem dizem, é um trio que se entende muito bem".



Assista "Sessão de Terapia" na Globoplay e, se precisar de mais dicas sobre construção de personagens complexas, leia nossas matérias relacionadas. Quem sabe, experimente deitar no divã!


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