Conversamos com três roteiristas em estágios diferentes da carreira para entender seus caminhos, conquistas e angústias
Ser roteirista no Brasil tem suas dificuldades, não é mesmo? Isso faz com que não exista um caminho muito claro para “chegar lá”. Cada vez mais percebemos que alcançar um lugar no mercado audiovisual depende de muitas variáveis e acontece de diferentes formas. O que faz esse caminho tão difícil? Será que é só ser bom naquilo que fazemos? Qual o peso do networking e das premiações em concursos? Se você já se perguntou alguma dessas questões pelo menos uma vez na vida, continue acompanhando esse texto. Tivemos o prazer de conversar com três roteiristas diferentes, cada um na sua própria fase no mercado audiovisual. O objetivo é entender como foi o caminho de cada um, o que precisa mudar na indústria audiovisual e que dúvidas restam para o futuro. Para complementar todo esse papo, teremos ainda a contribuição da produtora executiva Laura Barzotto, que atualmente trabalha na Abrolhos Filmes (São Paulo). Esse é o primeiro de uma série de conteúdos que pensamos junto com a Laura, abordando assuntos pertinentes sobre roteristas e o mercado de trabalho. Então fique ligado que em breve vai ter muitos conteúdos complementares no instagram da Laura!
Os diferentes caminhos dos roteiristas
Leonardo Ortiz, roteirista e editor de livros, construiu seu caminho no audiovisual de forma muito própria. Formado em Editoração pela USP, Ortiz já tem 10 anos de experiência no mercado editorial.
Também formado em Audiovisual pela ECA (USP), Leonardo deu seu primeiro passo na área trabalhando em uma empresa parceira de um banco, em um programa de inovação que trazia como proposta prestar consultoria de comunicação para startups.
“Eu acho que preparação de texto é muito interessante para o roteirista porque é uma coisa que te ensina a pesquisar. Dentro da preparação de texto, por exemplo, se está lá escrito que a Primeira Guerra Mundial aconteceu de 1914 a 1918 na Europa, você enquanto preparador de texto vai pesquisar se o conflito chamava Primeira Guerra Mundial mesmo, se aconteceu na Europa ou em outros lugares do mundo, se foi de 1914 a 1918 mesmo…” -Leonardo Ortiz
Ortiz acredita que a experiência com preparação de texto e pesquisa conferiu algumas vantagens profissionais para o seu trabalho no audiovisual, dialogando principalmente com o tipo de processo que ele prefere como roteirista.
“As pesquisas ajudam no roteiro - vão desde datas, notícias antigas de jornal, até efeitos de remédios porque um personagem precisa matar o outro, por exemplo. O mundo da editoração, nesse sentido, me serviu muito para o audiovisual”, explica o próprio Leonardo.
Há um pouco mais de 1 ano, Leonardo Ortiz entrou na produtora O2 Filmes e hoje faz parte de alguns projetos da casa, onde trabalha principalmente no desenvolvimento do software de roteiro Teksto, que lançará em breve no mercado.
Em suas palavras, “não só um software de desenvolvimento de roteiros, mas um software de desenvolvimento criativo”.
“O que eu faço é estudar teorias de roteiro e pensar junto com os programadores o que a gente pode programar e transformar em ferramentas virtuais para o desenvolvimento desse software. Dentro desse software eu estudo Mckee, eu estudo Truby, todos esses teóricos. Nesse meio tempo a gente acaba trabalhando em alguns projetos”. - Leonardo Ortiz
O processo de desenvolvimento do software ampliou suas possibilidades na própria O2, levando Ortiz a circular por diferentes salas de roteiro da casa.
“Para poder criar ferramentas para salas de roteiro, você passeia um pouco pelas salas de roteiro da O2. Ver como cada uma trabalha, ver as especificidades, como cada uma escreve a escaleta, você tem acesso a isso, você lê, você estuda…Eu fiz esse passeio de conversar com vários roteiristas, de entender como a HBO responde, de entender como a Amazon responde, de entender como a Netflix responde, o que é prática comum de mercado, o que são as coisas que a gente não sabe fazer ainda, etc”. - Leonardo Ortiz
Para ele, toda essa experiência proporcionou um domínio da parte “técnica e burocrática” do processo de construção de roteiros, o que Leonardo entende como “essencial porque as pessoas em geral não sabem tudo isso”.
“As pessoas que estão se inserindo no mercado acham que só importa a criatividade, mas na verdade não! Talvez seja o que menos importa. O que importa para os canais é cumprir cronograma, fazer tudo no prazo, fazer coisas que são filmáveis, etc.”, explica o roteirista, que completa: “sinto que já desenvolvi essas habilidades e acho que o próximo passo, agora, é tentar ir para o campo criativo”.
Embora venha de outro mercado, Leonardo Ortiz conseguiu uma interessante inserção no meio audiovisual por uma via que proporcionou a ele a chance de desenvolver seus conhecimentos técnicos e ao mesmo tempo fazer bons contatos.
A questão para ele neste momento é: como fazer essa transição para um ambiente onde ele pode desenvolver mais o seu lado criativo? Que caminhos existem para quem, além de construir uma carreira em salas de roteiro de grandes projetos, também quer se lançar no mercado com a sua própria voz e conteúdos autorais?
Em paralelo a isso, uma outra questão surge: como se apresentar no mercado considerando que boa parte da sua experiência não pode ser abertamente discutida (principalmente por contratos de confidencialidade)?
Diferente de Ortiz, Márcio Schoenardie, roteirista e diretor, trilhou um caminho um pouco menos técnico, dependendo principalmente do “aprendizado na prática” em seus primeiros passos no meio audiovisual.
“Eu entrei no mercado lá no final dos anos 1990, começo dos anos 2000, mas eu não entrei como roteirista. Na minha época não tinha faculdade de cinema ainda, eu fazia faculdade de Publicidade. Comecei estagiando como assistente de produção. Eu fui me descobrindo, na verdade”, explica Schoenardie.
Com a popularização dos cursos voltados ao audiovisual (que vão da Graduação a cursos técnicos, workshops e muitos também online), essa já não é a realidade de inserção de vários profissionais que hoje se encontram no mercado.
“E eu sempre almejava ser o diretor! Quando a gente entrou estagiando, a maioria dos meus amigos também queria ser diretor”, confessa o roteirista, ressaltando: “ser diretor depois de um tempo começou a me obrigar a saber o que eu queria contar e escrever os meus próprios roteiros”.
“Fiz os meus dois curta-metragens na linha infanto-juvenil, que é uma coisa que eu gostava e ainda gosto. Me tornei roteirista porque eu fiz os roteiros desses meus curtas, para botar nos editais para que eles pudessem acontecer” - Márcio Schoenardie
Márcio conta que seu primeiro trabalho como roteirista foi ainda em Porto Alegre para a RBS TV (afiliada da Rede Globo), na série “Fantasias de Uma Dona de Casa”, dirigida pela Ana Luiza Azevedo (Casa de Cinema de Porto Alegre).
“Enquanto eu fazia os roteiros eu ia tendo aulas também, com o Jorge [Furtado], com a Ana, com as pessoas com quem eu trabalhava”. - Márcio Schoenardie
Schoenardie desenvolveu principalmente o humor e tem experiências tanto na TV como no cinema. Na direção, Márcio assina títulos como “Mulher de Fases” (HBO), “Rotas do Ódio” (Universal), onde assume o papel de co-diretor e “Os Bravos Nunca se Calam”, longa-metragem a ser exibido em um futuro próximo, mas que já foi destaque no Festival de Cinema de Brasília. Como roteirista, Márcio participou principalmente de projetos televisivos, como a série “Fora de Quadro” (Canal Brasil), roteirizada e dirigida ao lado de Janaína Fischer e a série “Doce de Mãe” (TV Globo), vencedora do Emmy Internacional como Melhor Série de Comédia em 2015.
Qual o status atual do mercado? Quais são as principais angústias dos roteiristas?
Bem como entender os possíveis caminhos para se tornar roteirista ou diretor, é preciso conhecer o mercado onde estamos entendidos. Além disso, é fundamental aplicar a autocrítica, para que a reflexão abra caminhos palpáveis a serem seguidos dentro do setor e possibilite uma verdadeira reinvenção.
Para Ortiz, a situação do mercado audiovisual é complicada: ele enxerga o setor como algo “muito desestruturado e amador em alguns sentidos”. Ortiz também não vê
“um caminho certo” e bem definido a se seguir - principalmente para autores e roteiristas.
Por que isso acontece? Ortiz salienta que talvez seja em razão da relação desigual entre oferta, demanda e formação de profissionais.
“No mercado audiovisual a gente tem uma escassez imensa de mão de obra. Tem uma demanda gigantesca vindo cada vez mais e ao mesmo tempo nós temos profissionais no mercado que não estão dispostos a formar pessoas. Eles querem que as pessoas estejam prontas e que elas cheguem para resolver o problema”. - Leonardo Ortiz
Essa questão traz verdadeiras angústias por parte dos roteiristas brasileiros. Para trazer um pouco da perspectiva de quem está dando os primeiros passos na indústria audiovisual falamos com a roteirista Priscila Martz, formada em Comunicação Social, Artes Cênicas, Dramaturgia e que atualmente estuda roteiro por conta própria.
"Acho que a maior angústia é não estar recebendo para respirar numa sala de roteiro. Os outros profissionais conseguem resolver todo tipo de questão, mas não são as pessoas ideais para discutir diálogo, estrutura e plot." - Priscila Martz
Como encontrar salas de roteiro para se fazer parte? Como funciona o ingresso nesses locais? Se para um roteirista veterano essa dúvida ainda está presente, para os que estão iniciando a carreira fica tudo ainda mais abstrato.
Para entrar no mercado, Martz primeiro participou de duas webséries que conquistaram prêmios internacionais e, por causa disso, foram procuradas por um grande canal. Hoje em dia, está participando do desenvolvimento de três séries. “Ariel” e “Na Minha Pele” estão em fase de aquisição, enquanto a terceira está em ‘quarentena’, como comenta.
Encontrar o equilíbrio entre a técnica e a voz própria parece ser outra grande dificuldade dos profissionais desse ramo. Depois de acumular experiências em trabalhos de grande alcance, Schoenardie busca um caminho mais autoral. Em suas palavras, “emplacar algo que tenha relação com o meu universo”.
“Eu sinto que a gente ainda tem uma fixação na fórmula. É assim, tem que usar a fórmula, mas tem outra coisa do roteiro que envolve a intuição também. É a tua história". - Márcio Schoenardie
Como obstáculo para isso, o roteirista aponta a dificuldade em emplacar produtos audiovisuais dedicados a gêneros como fantasia e aventura, que historicamente demandam um investimento que nem sempre faz parte do orçamento das produtoras e investidores. “Eu acho que a gente não sabe misturar gêneros”, comenta Schoenardie. Seu objetivo é esse, poder desenvolver projetos autorais que mesclam diferentes gêneros cinematográficos de forma equilibrada. Ortiz concorda que essa falta de acessos dentro do mercado atual prejudica a descoberta pessoal dos autores. Para ele, quando o roteirista "está mais preocupado em vender um projeto do que em contar uma história”, isso se torna um problema.
O que podemos fazer para melhorar a atual situação do mercado?
Como o nosso objetivo aqui é aprender com as experiências particulares de cada um, reunimos também reflexões inspiradas nas entrevistas. São propostas que podem lançar uma luz sobre o tema, propondo mudanças estruturais no nosso mercado audiovisual.
1. Fomentos governamentais
Márcio acredita bastante no papel fundamental das leis de incentivo e o aporte do Fundo Setorial do Audiovisual para o fomento do setor que, em suas palavras, “é como uma bicicleta antiga difícil de pedalar”.
“O Governo tem que retomar alguma coisa senão em pouco tempo a indústria desmorona muito. Eu tento ser otimista nesse aspecto, de que a gente está sabendo pelo menos debater mais sobre isso tudo”, responde Schoenardie.
O roteirista completa: “a gente sabe o que precisa hoje. A gente precisa gerar produtos diversificados para um público muito amplo que tem uma demanda muito grande”.
2. Rodadas de negócios em eventos e festivais
Schoenardie também acha as rodadas de negócios essenciais: “uma grande maneira de, no mínimo nos conhecermos”. Nesses ambientes, a idéia é “conhecer pessoas do mercado" para depois reencontrá-las, pois assim as produtoras já reconhecerão os roteiristas como profissionais atuantes no mercado.
Portanto, o papel de circular por festivais e rodadas de negócios é fundamental na carreira. Isso levanta questões que já são identificadas pelo mercado como pontos de atenção, fazendo o roteirista refletir sobre o próprio processo.
3. Espaços para debater teorias, roteiros e criar coletivos
Schoenardie afirma: “ter acesso a informação é essencial, mas também é preciso ter acesso uns aos outros”. O papel de debater roteiro, de construir locais de troca de ideias, informações e estudos é absolutamente fundamental.
Sobre isso, ele comenta sobre o papel da intuição no processo de construção, o que não invalida utilização de fórmulas e guias para a construção narrativa. Pelo contrário: um processo pode alimentar o outro.
Já Ortiz montou um grupo de estudos para entender, na prática, os processos criativos. Esse grupo se transformou na sala de roteiro que deu origem à série vendida através do Serie_lab.
“Sou um pouco cético a respeito desse modelo de negócio. Nossos projetos, como roteiristas, em geral não são bons o suficiente… É difícil falar isso, mas é verdade. A gente precisa primeiro aprender a fazer para depois aprender a negociar”, Ortiz ressalta.
Isso vale como uma chamada tanto para o roteirista quanto para o player (ou produtor), pois Ortiz se refere a um modelo centrado em rodadas de negócios, mas muito pouco em ferramentas de formação.
"Em vez de fazer essas rodadas de negócio, talvez a gente tenha que fazer alguns workshops de formação”, comenta.
4. Conhecer o público-alvo do projeto e apostar na versatilidade como autor
O autor ou roteirista também precisa ter noção do público-alvo de seu projeto. Isso interfere não só na escrita como também na negociação mais adequada para a obra. Martz, por exemplo, afirma: "[...] tento entender o comportamento do público-alvo para adequar seus desabafos, suas questões e suas preferências aos meus interesses". Já Ortiz traz a questão da versatilidade dentro dos projetos: “Eu, enquanto roteirista, entendo sala de roteiros de série como trabalho - é onde eu me posiciono e onde eu pago minhas contas - de preferência ficção, mas não vejo problemas em desenvolver reality shows, por exemplo. Tenho projetos de longa, tenho projetos de curta, mas eu encaro aquilo como a minha expressão artística".
Todo roteirista precisa saber se adaptar a formatos e exigências diferentes, mas também entender o que há de mais relevante na sociedade hoje. Afinal, a indústria valoriza projetos que marquem seu lugar no presente, unindo uma voz autoral singular a uma compreensão certeira de processos e técnicas.
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