Através do case do filme "A Despedida", a autora Lulu Wang explica como traduziu sua experiência de vida para uma narrativa premiada
A roteirista, diretora e produtora Lulu Wang nasceu em Beijing, na China, mas construiu sua carreira cinematográfica nos Estados Unidos. Em 2019, o segundo filme de Wang, "A Despedida" (The Farewell, 2019), recebeu atenção mundial ao acumular prêmios e nomeações em diversos festivais de prestígio como Globo de Ouro e Independent Spirit Awards. "A Despedida" é sobre Billi (interpretada por Awkwafina), uma jovem mulher de descendência Chinesa que mora nos EUA, e as tentativas de sua família de manter o diagnóstico de câncer de sua avó escondido da mesma durante os últimos meses de sua vida. Para realizar "A Despedida", Wang teve que mergulhar na própria história de vida, seus medos e memórias mais profundas. Num artigo para o site Movie Maker, a autora divide conosco muitos aspectos preciosos que envolveram a construção de seu memoir movie (ou filme autobiográfico, em português).
Como traduzir sua experiência de vida para uma estrutura narrativa? Quais os pontos emocionais e práticos mais desafiadores?
Em meio à reflexões sobre o quão significativa foi essa experiência e sobre os desafios únicos de fazer um filme tão pessoal, trazemos valiosos insights da autora Lulu Wang sobre sua experiência.
O restante do texto foi traduzido e adaptado da matéria escrita por Lulu Wang ao Movie Maker.
Construindo um filme autobiográfico, nas palavras de Wang
1. Definindo o que é "pessoal"
O conselho popular dos cineastas é escrever o que você sabe e tornar seu trabalho pessoal. Mas "pessoal" sempre significa autobiográfico? E o autobiográfico automaticamente o torna pessoal? A chave para tornar algo pessoal é a especificidade. Especificidade não precisa significar "autobiográfico", mas sim desenhar a vida real, personagens reais, experiências reais. A especificidade não é fácil, especialmente se você tem uma formação multicultural como a minha.
Para contextualizar, tornar "A Despedida" o mais pessoal possível significou criar uma co-produção entre os EUA e China; vasculhar atores de todo o mundo para formar um elenco de 15 personagens; escrever o roteiro e dirigir em dois idiomas, filmando em dois continentes diferentes, com estilos de produção muito diferentes e navegando pelas diferenças culturais entre nossa equipe americana e nossa equipe chinesa.
Ainda assim, é uma batalha que vale a pena, porque as histórias se tornam universais por sua especificidade.
2. Honestidade emocional é a melhor política
Ao fazer um filme de memórias narrativas, você não se importa com os fatos, como se pode ver em um documentário, mas deseja contar uma história que seja verdadeira para sua experiência e sentimentos. Não se trata de precisão factual, mas de honestidade emocional. Sei o que você está pensando: "Parece uma boa idéia, mas como é o processo de concretamente buscar honestidade emocional? Como decidimos o que colocar no roteiro e o que deixar de fora? Como escolhemos nossos colaboradores e orientamos todo o elenco e equipe para a mesma verdade emocional?” Há uma citação de Mark Twain que diz: "A única diferença entre realidade e ficção é que a ficção precisa ser crível". Quando escrevi e narrei uma versão dessa história para o This American Life e comecei a navegar por todas essas decisões, fiquei dividida entre minha lealdade ao filme e minha lealdade à minha família - tentando ser sincera, mas respeitosa ao mesmo tempo. A realidade é que essas duas coisas nem sempre podem coexistir. É uma escolha impossível, mas você deve fazê-la. Durante a produção de filmes, muitas coisas estão além do seu controle, mas a única coisa sobre a qual você tem controle é o seu roteiro.
É onde você mapeia o que é o filme e o que não é, para que ele sirva como um modelo para todas as etapas do processo depois, da preparação à produção. Como escritor(a), escolhendo o que incluir sobre cada um de seus personagens, você precisa considerar quais informações o público precisará para entender por que cada um de seus personagens teria as reações emocionais que eles têm no filme.
"A Despedida" explora como Billi e diferentes membros de sua família lidam com a dor, além de seus relacionamentos pessoais com a morte iminente da avó. Para o pai e o tio, a tristeza deles é envolvida por um sentimento de culpa por emigrar da China e deixar a mãe envelhecer sozinha. Para Billi, é sobre o tempo que ela perdeu com "Nai Nai" e todas as experiências compartilhadas que elas nunca terão.
Lembre-se: todo personagem é o protagonista de seu próprio filme e, quando o filme é baseado em um elenco, o público deve sentir que o filme pertence a todos e cada um deles.
Ainda assim, é muito crucial que um(a) escritor(a)-diretor(a) tenha uma idéia clara da perspectiva dominante da sua história. Embora "A Despedida" seja um filme de "grupo", Billi é a protagonista que nos guia através da narrativa. Então, eu precisava criar um conjunto multidimensional de personagens enquanto simultaneamente enraizava o público na perspectiva de Billi.
Parte dessa exploração da perspectiva foi apresentada nas páginas do roteiro, mas grande parte também foi ditada por elenco, cinematografia, edição, design de som e música.
3. Lidando com diferentes idiomas
Essa é uma das áreas em que eu me desviei da realidade, porque meu próprio chinês é bastante fluente. Ao escalar Nora (nome real da atriz Awkwafina), eu sabia que o chinês dela era limitado, mas isso não prejudicou a história e, de fato, ajudou a apoiar a idéia de ela ser uma americana totalmente assimilada e pária em sua família. Com o resto do elenco, encontrei atores que tinham habilidades de linguagem semelhantes às da minha família. Isso significava que eu estaria fazendo um filme americano 75% em mandarim com legendas em inglês. Fiz isso não apenas para permanecer teimosamente ligada aos fatos da vida real, mas porque a comunicação - ou a falta dela - é um tema importante em qualquer filme sobre uma família de imigrantes.
Além disso, há outras lacunas na comunicação devido à linguagem, cultura e distância. Há uma cena no filme em que essas disparidades linguísticas realmente desempenham um papel vital na manutenção da mentira da família: Billi faz a um médico de língua inglesa algumas perguntas muito reveladoras bem na frente de sua avó, sabendo que ela não entenderá.
Fazer um filme bilíngüe geralmente significa ter que escrever um roteiro bilíngue. Quando escrevi o roteiro, ouvi muito do diálogo em chinês, mas o traduzi para o inglês na minha cabeça para que eu pudesse colocar as palavras na página.
[O diálogo que seria falado em chinês mandarim estava entre colchetes, assim.]
Para nos envolvermos com o elenco chinês e outros parceiros em potencial, tivemos todo o roteiro traduzido por um tradutor profissional. Isso significa que sempre tivemos uma versão do roteiro em inglês e uma em chinês.
Como o roteiro continuou a mudar durante a produção, as traduções também foram um processo contínuo. Mesmo depois que chegamos ao set, ocasionalmente eu ouvia uma linha de diálogo chinês que não parecia muito certa e, com a ajuda dos atores chineses, conseguimos fazer com que o diálogo em todos os idiomas parecesse natural e autêntico.
4. Escolhendo o elenco de familiares
Uma das perguntas que eu mais recebo é: "Como você escolhe atores para interpretar você ou os membros de sua própria família?" Como é um grupo de atores, trata-se tanto do equilíbrio e da química do grupo quanto da força dos atores como indivíduos. Montar um elenco desse tamanho é muito parecido com um quebra-cabeça - ver como um rosto funciona contra outro para criar simetria ou contraste.
A primeira atriz que escalamos foi Nora (Awkwafina) porque ela é a pivô, a forasteira, mas o yin do yang da família. Ela precisava se sentir essencialmente americana, enquanto ainda mantinha uma conexão crível com a China e sua avó. Ela precisava ser capaz de expressar tudo isso com o rosto, já que Billi não é capaz de expressar sua opinião por boa parte do filme.
Quando comecei a conversar com Nora sobre o papel de Billi, deixei claro para ela que não estava procurando alguém para me interpretar. Billi não sou eu. Ela é uma personagem que segue uma jornada semelhante à minha e tem as experiências e emoções que eu tive, mas ela não precisa se comportar como eu nem falar como falo.
Em vez de tentar me canalizar para minha protagonista, pedi à minha atriz principal que simplesmente trouxesse suas próprias experiências de amor, perda e alegria à personagem.
Tomei uma abordagem semelhante ao escolher o elenco, não necessariamente tentando encontrar réplicas visuais, mas procurando uma essência específica de cada personagem que fosse importante para a história.
5. Colocando sua história em perspectiva
Ao levar "A Despedida" do roteiro à tela, toda decisão ajuda a moldar a perspectiva - a lente através da qual o público experimenta a história. Minha diretora de fotografia Anna Franquesa Solano e eu escolhemos uma ampla proporção (2:39:1), que é frequentemente usada para paisagens da natureza, como uma maneira de retratar a "paisagem" de uma família. A perspectiva mais ampla nos permitiu capturar as várias faces da família em um único quadro, ressaltando sua importância como uma unidade.
Quando Billi está sozinha nesse mesmo cenário amplo, sentimos realmente a ausência de sua família e seu isolamento. Esse enquadramento apóia o tema do filme: individualismo versus coletivismo. As cenas mais difíceis de filmar foram aquelas com umas 15 pessoas em espaços pequenos e num cronograma de filmagem muito limitado. Fazer uma cobertura tradicional de 15 personagens não é apenas desinteressante, mas também demorado. Usamos blocking e a composição para criar cenas longas, economizando singles e close-ups para momentos muito específicos. Criar a linguagem visual do seu filme envolve uma série de opções que combinam criatividade com praticidade. Por isso é importante ver os desafios como oportunidades.
Pense fora da caixa em termos de apresentar referências. Usei filmes de terror como referência visual para ajudar a enraizar o público na perspectiva de Billi. Isso pode parecer não convencional para uma comédia dramática familiar, mas o ponto de vista de Billi está cheio de medo e ansiedade.
Os filmes de terror têm a ver com criar atmosfera e medo pelas coisas que não vemos, mas sentimos e antecipamos. O monstro de "A Despedida" é a mentira que Billi e sua família contam, mantendo todos no limite da tensão. A vida real não é ditada externamente por gênero; portanto, a mesma situação pode ser engraçada, triste ou aterrorizante, dependendo da perspectiva. Os filmes mais pessoais são os que canalizam a empatia e nos permitem sentir e experimentar junto com os personagens. Nesse sentido, um filme pode ser pessoal independentemente de ser autobiográfico, ficção ou mesmo ficção científica.
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