Como a disputa entre roteiristas e agências hollywoodianas vem matando as ideias originais
Diferente do mercado audiovisual brasileiro, a indústria americana trabalha muito com a figura dos agentes. No caso dos roteiristas, são eles (e suas empresas) que fazem o meio campo entre autores e estúdios, negociando cachês e condições de trabalho.
Embora faça muito parte da engrenagem do mercado hollywoodiano, um crescente atrito entre roteiristas e agências de representação artística vem tomando recentemente o mercado hollywoodiano, impactando muito mais do que os contratos individuais.
O que realmente está acontecendo, afinal? Que tipos de atritos existem entre o sindicato de roteiristas norte-americanos e os agentes que os representam? E mais: como tudo isso está impactando o funcionamento de toda a indústria cinematográfica?
Vamos entender em detalhes a origem dessa disputa, seus sintomas e problemas futuros que podem surgir com base nisso.
A raíz do problema
Antes de mais nada, vamos entender melhor os envolvidos nos dois lados dessa equação. A WGA (Writers Guild of America West), de um lado, é o sindicato que representa autores-escritores dos EUA, conhecida principalmente pelo seu papel entre os roteiristas em Hollywood.
A WGA foi responsável pela greve de 100 dias que parou Hollywood em 2007. Na época, diversos programas televisivos entraram em hiato e até mesmo tiveram temporadas mais curtas como resultado dessa paralização geral.
Do outro lado do ringue está a ATA, um coletivo de mais de 100 agências de talentos que representam artistas nos EUA. Entre essas tantas, existem quatro super-agências conhecidas como The Big Four (As Quatro Grandes).
São elas as empresas Creative Artists Agency, William Morris Endeavor, United Talent Agency e ICM Partners. Estima-se que juntas elas acumulam, sozinhas, quase 70% dos ganhos de representantes da WGA (segundo o próprio sindicato).
Afinal, onde começou o problema que hoje vem se intensificando? De acordo com a própria WGA, entre os anos de 2014 e 2016 a média de salário de roteiristas-produtores de TV caiu em 23%.
A WGA afirma que isso se deu muito pelo boom dos serviços de streaming (como Netflix e Amazon Prime). Essas novas majors são responsáveis por movimentar a economia criativa por ium lado, mas também levaram a criação de séries televisivas com temporadas mais curtas.
Produzindo temporadas de em média 10 episódios, a Netflix vem alterando a lógica do mercado audiovisual americano, acostumado a manter seus autores em contratos envolvendo mais de 20 episódios por season.
Menos episódios significa contratos menores. Ou seja: salários igualmente reduzidos (isso sem contar na questão dos residuals). Para defender melhores contratos, os autores da WGA esperavam contar com o apoio das agências que os representam, afinal de contas.
É aí que o problema começa. O sindicato dos autores afirma que as agências não estão mais agindo a favor deles, mas apenas do seu próprio interesse financeiro. Esse conflito curioso parece ir contra a própria lógica de agenciamento.
Se as grandes agências ganham proporcionalmente aos contratos que conseguem para os seus autores, como "agir por interesse próprio" iria contra lutar por melhores cachês e condições de trabalho para os roteiristas?
Segundo a WGA, a questão é que grande parte das agências de talentos foi vendida para outras empresas privadas no decorrer dos anos. Isso teria influenciado toda a lógica operacional das mesmas, que já não estariam atendendo mais aos interesses dos seus agenciados.
Grandes empresas e investidores (inclusive poderosas casas de produção) já detém porções e ações das maiores agências de Hollywood, trazendo-as mais para perto do seu objetivo comercial. Algumas delas, como é o caso da Endeavor, já deixam de ser apenas agências para se tornarem verdadeiros estúdios.
Agora vem a pergunta: se o papel da agência é defender melhor salários e condições para os roteiristas, qual é o interesse delas nessa nova fase, onde se aproximam muito mais dos próprios estúdios que lucram restringindo as margens financeiras dos seus roteiristas contratados?
Recentemente a WGA anunciou estar planejando encerrar o contrato conhecido como Artists' Manager Basic Agreement, responsável por alimentar essa engrenagem que vem mantendo a relação entre agências e roteiristas norte-americanos desde 1976.
Negociações para um novo contrato vem sofrendo fortes turbulências, uma vez que ambas as partes não concordam com todos os termos. Para o sindicato dos roteiristas, um dos grandes problemas dessa nova conduta das agências está na forma como elas se apropriam de propriedades intelectuais.
Deter "propriedades intelectuais" é a mina de ouro do mercado hollywoodiano e já vem transformando todo o setor de agenciamento. Seja assumindo uma parcela de lucro dos filmes ou programs de TV, ou mesmo adquirindo produtos midiáticos como o UFC (Ultimate Fighting Championship), o controle de propriedades intelectuais vem mudando o jogo.
As agências, a propriedade intelectual e a era das "versões"
Hollywood vive uma era de reciclagem audiovisual, seja através de remakes, reboots ou a boa e velha "versão americana" de conteúdos estrangeiros. Com a decadência dos conteúdos originais, fica mais difícil o surgimento de novas e inspiradoras vozes no cinema.
Com poucos recursos, muitos autores buscam no cinema independente um espaço para explorar a sua voz artística. Aqui, no entanto, estamos falando de filmes com maior alcance e como as relações de trabalho acentuam os atritos entre roteiristas e a indústria norte-americana.
Agora fica a reflexão: porque isso acontece? Quem lucra com esse tipo de negócio? Vamos entender melhor esse ponto a seguir.
Vivemos um período onde alguns titãs de Hollywood concentram propriedades intelectuais bilionárias, boa parte representadas pela nova onda de filmes de super heróis. A lógica da indústria cinematográfica está voltada totalmente para isso (afinal, dá muito lucro).
Essa concentração de recursos vem restringindo bastante o investimento em filmes de orçamento "médio". Toda uma camada de profissionais que viam nesses filmes sem orçamentos bilionários e imenso apelo de público uma alternativa anda com dificuldades em encontrar formas de financiamento/inserção.
Como resultado, um abismo vem se abrindo entre dois extremos: ou você se torna um roteirista milionário que trabalha com franquias de muito sucesso, ou você junta seus trocados em pequenas janelas de investimento/exibição. Todo um "meio termo" parece estar perdido.
Onde ficam os filmes de arte no meio disso tudo? A solução muitas vezes é buscar fundos de investimento internacionais, dependendo da confiança artística de barões culturais em um sistema que opera muito em "fundo perdido" (apenas em termos financeiros, é claro).
Muitos podem acreditar que esse é um problema de "nicho", mas a verdade é que vem impactando bastante a indústria do cinema norte-americano. A relação das agências com essa lógica de apropriação da propriedade intelectual vai ainda mudar muito o cenário do cinema.
Porque é tão difícil negociar ideias originais em Hollywood?
Esse movimento que as agências artísticas vem tomando - de uma empresa onde o autor é a sua principal fonte de renda para um negócio onde ele é apenas mais um asset no seu portfólio - alterou as formas de negociação.
Elas entenderam a nova lógica do mercado e parecem não ter tanto interesse assim em lutar contra ela. Afinal, vimos anteriormente que investidores (mesmo de grandes estúdios de produção) já dominam esse campo.
Um dos grandes sintomas dessa mudança de ares está na crescente dificuldade, por parte dos autores, em emplacar suas ideias originais em uma indústria tomada por remakes. A verdade é que produtores e executivos preferem investir em produtos derivados dos chamados IPs (Intelectual Properties).
Mesmo quando uma ideia original ganha a simpatia de executivos, o primeiro movimento tende a ser associá-la a um IP existente (de preferência que eles tenham os direitos ou acesso fácil). A lógica agora é essa: IP se tornou tendência, enquanto conteúdo original virou sinônimo de fracasso.
Isso ocorre por conta da ideia que a indústria cinematográfica tem dessa propriedade intelectual: normalmente ela vem com um valor associado e quantificado. E outra: propriedade significa "deter os direitos de algo". Os estúdios não querem mais investir em novas ideias. Eles querem ser donos das suas próprias. Se eles não criam, então eles compram, simples assim.
A Disney é um exemplo claro disso, adquirindo propriedade intelectual por todos os lados (Pixar, a franquia Star Wars, Universo Marvel, só para citar alguns). Com isso, a Disney se transformou em uma mega-corporação de extremo valor na indústria.
Qual o recado por trás disso tudo? A Disney, por exemplo, ainda pode e vai investir em alguns conteúdos originais. A questão não é essa. A questão é que ela não precisa mais disso para sobreviver. Pelo contrário: sua sobrevivência e crescimento se dá pelos IPs adquiridos.
IPs atraem executivos como nenhum ideia original. Eles já existem no mercado, tem seu valor próprio, são uma "marca" fácil de associar argumentos de venda e aquietar a ansiedade de investidores que se perguntam, o tempo todo, se aquilo vai dar dinheiro ou não.
Porque os IPs resultam em piores contratos para roteiristas?
Se formos resumir a questão em uma metáfora, é como se a indústria hollywoodiana estivesse investindo forte em combustíveis fósseis, enquanto ignora novas fontes de energia. O combustível fóssil está aí, funciona, movimenta a economia e não representa um investimento de tanto risco.
Mais e mais, Hollywood existe em volta da reciclagem de antigos produtos audiovisuais, adaptações literárias e outras fontes de propriedade intelectual já estabelecida. Aqui se faz uma engenharia inversa, do marketing para a criação (e não o contrário).
Os advogados têm um papel cada vez mais importante nessa indústria, uma vez que ela está alicerçada em aquisição, transferência, separação ou integração de direitos. Aqueles que detém direitos sobre uma propriedade intelectual lucram cobrando algo como um "aluguel", com tempo determinado em contrato.
Investir em filmes ou séries que tem origem em propriedade intelectual de terceiros (como franquias de sucesso da década passada, por exemplo) transforma a relação de trabalho em Hollywood em um sistema top-down.
Nesse meio, os roteiristas precisam passar constantemente por "audições" para conquistar contratos de adaptação. Aí entra um primeiro fator: os cachês base para adaptações são menores que aqueles que envolve o desenvolvimento de produtos originais.
Outro ponto envolve o sistema de pitchings, onde roteiristas elaboram uma apresentação oral da sua ideia a fim de fechar contrato. No cenário atual, roteiristas não recebem pelo trabalho de elaboração de pitching com a sua visão original acerca daquele IP.
Executivos tem acesso a uma série de apresentações com visões diferentes para uma mesma adaptação, tudo isso sem custo. Combinar ideias de múltiplas fontes é uma prática comum no mercado, mostrando que esse novo sistema favorece muito mais as grandes majors.
IPs valiosas não significa também contratos gordos com autores? Até significa, mas são poucos os roteiristas que tem acesso a esses trabalhos. Quando Hollywood ainda lucrava muito com ideias originais, buscava-se o próximo grande hit em fontes variadas, de pessoas com trajetórias distintas.
Quais são os roteiristas que os grandes estúdios confiariam seu valioso IP adquirido? É claro, aqueles poucos que já trabalharam com outros sucessos remasterizados. Dificilmente um roteirista em começo de carreira receberá o convite para adaptar aquele super best-seller.
Por fim, esse sistema fez com que o roteirista se tornasse ainda mais descartável. Não me entenda mal, os roteiristas já são bem descartáveis em Hollywood faz algum tempo. O problema é que isso apenas piorou.
Ao investir em projetos originais fica um pouco mais difícil de se livrar do autor da ideia. Uma vez que os roteiristas se envolvem mais com IPs alheios, propriedade do próprio estúdio, os mesmos se sentem mais confortáveis para substituir ou mesmo pressionar seus autores a seguirem certas "agendas".
Nisso tudo, onde entram as agências?
As agências e o problema do packaging
Para as agências também é um bom negócio trabalhar com conteúdos que já existem no mercado através da aquisição de direitos. Livros, linha de brinquedos, jogos eletrônicos, filmes e séries estrangeiras, tudo isso entra nesse jogo.
Primeiro, uma ideia original exige um poder de convencimento muito maior e uma apresentação mais rebuscada. Se o projeto é derivado de algo que já existe, esse produto serve como um proof of concept, capaz de exibir o seu valor artístico e financeiro ao mesmo tempo.
Portanto é possível entender que o comodismo das agências em entrar nesse negócio vem alimentando bastante o problema. Elas são literalmente "agentes ativos" nessa equação complexa.
Outro ponto é a facilidade em fazer o chamado packaging, uma prática antiga em Hollywood mas que, segundo a WGA, vem ganhando proporções nocivas para o mercado. Mas o que é packaging, afinal?
A tradução do termo, em português, seria algo como "empacotar". Fica estranho, mas ajuda a compreensão. É basicamente isso que as agências fazem - um "pacote de talentos". Essa é outra forma que elas têm de ganhar vantagem sobre roteiristas e estúdios de produção.
As agências normalmente não trabalham apenas com roteiristas. Elas têm diretores, atores e todo o tipo de talentos no seu portfólio. Em agências grandes, esses talentos representam grandes nomes da indústria cinematográfica.
Ao apresentar o projeto de um dos seus autores, é comum que o estúdio ache mais interessante se o mesmo estiver associado a um ator famoso ou uma diretora de sucesso, por exemplo. Isso é muito mais atraente para os executivos.
Se esses talentos fizerem parte da sua cartilha de clientes, as agências podem associá-los aos projetos em uma espécie de venda casada. Com isso, a agência recebe uma quantia do estúdio por providenciar a ele esse almejado "pacote".
Essa lógica de venda associada vem rendendo processos por parte de roteiristas, que se sentem lesados nessa relação. Ao lucrar com estúdios através do packaging, a WGA afirma que as agências não estão mais trabalhando para providenciar melhores contratos aos roteiristas.
O objetivo de eliminar essa "taxa de packaging" paga pelos estúdios tem um segundo propósito digno de nota: grandes quantias saem do orçamento de produção diretamente para os bolsos das agências, que ganham um extra fazendo, essencialmente, o seu trabalho.
Segundo a WGA, as cifras vão de U$ 30 a 100 mil por episódio de uma série de TV. É por isso que o sindicato vem aconselhando seus autores a encerrar negócio com as agências, tomando seus próprios rumos nesse cenário caótico.
Com a nova lógica de investimento por trás dos estúdios e agências, investidores que detém ações das empresas podem lucrar mesmo antes do produto estar pronto, apenas através dos astros e talentos associados a cada projeto.
Sobrevivendo a essa nova era
No fim, a batalha que a WGA vem tomando nesses últimos anos pretende melhorar essas relações de trabalho e impedir que os roteiristas permaneçam como o elo fraco nessa cadeia multi-milionária.
É importante que esse passo seja tomado para impedir que o interesse financeiro dite a regra do jogo. Caso contrário, se tornará insustentável para os autores em Hollywood sobreviver artisticamente nesse cenário.
Até o presente momento, as grandes agências não estão dispostas a ceder o sistema de packaging. Por outro lado, os autores descobriram outras vias, procurando agências menores e movimentando o mercado de forma um pouco mais democrática.
Esse pode ser o início de uma nova revolução na indústria cinematográfica hollywoodiana. Para isso, porém, ainda temos um longo caminho pela frente.
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